segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Cultura digital e desmassificação II

Em vez de massa, o comum Pelo menos há mais condições de surgirem pessoas conscientes desta circunstância e que se conectam a outros, em rede, para gerar capacidade de influir e de produzir narrativas novas, mais autônomas que heterônomas. É também outra ideia de coletivo, não a que Ortega criticava, em cujo interior as ideologias das grandes narrativas achatavam as consciências. Trata-se de uma ideia de coletivo em que ponto a ponto, pessoa a pessoa, os sujeitos que o compõem têm liberdade de ser e de pensar por si próprios. Em vez de massa, poderemos falar em “comum”, em que os indivíduos, com mais liberdade do que antes se reúnem livremente, autonomamente, para colaborar, para trabalhar em conjunto. A massa é passiva, o comum é ativo. Estão dadas condições para um pós-homem-massa, integrante de uma humanidade-rede, diversa, amalgamada, em que aos traços da homogeneização cultural são acrescentados uma heterogeneidade viva de indivíduos em rede, formando coletivos que pensam o comum a partir da contribuição efetiva, ativa e crítica de seus integrantes. A esses está colocado o problema de saber a que se ater e compreender o “tema de nosso tempo”. Também se pode falar na necessidade de construção de uma outra ideia de Estado, de partidos e ideologias, não ortopédicas (como criticava Ortega), mas também não ausentes a ponto de permitir o laissez-faire do século XIX, o liberalismo econômico (que ele também criticava pela substituição que este fazia dos valores, por preços) tomar conta da cultura. É tempo de falar sobre as condições de possibilidades da superação da dicotomia massa-minoria abordada por Ortega pois, como as condições da análise de Ortega mudaram - as circunstâncias técnicas se transformaram - a pedagogia social e o papel das minorias mudam também. Precisamos de uma síntese nem horizontalista (massa) nem verticalista (minoria), mas uma espécie de diagonal provocadora de sínteses e convergências: é a era do “e”, das conjunções. O desafio é similar ao que Ortega colocou-se: o de não ser binário, idealista ou realista, nem racionalista nem vitalista, nem eu nem circunstância, mas amálgama de um e outro. Dessa maneira, a tensão massa-minoria das sociedades, pela descentralização dos meios de produção e reprodução da cultura, traz outro sentido: a pedagogia necessária não é aquela de poucos homens autênticos, nobres, seletos e esnobes do início do século XX, atuando sobre a massa, mas uma vanguarda formada por pessoas conectadas em rede no mundo todo, capazes de liderar processos locais e globais de combate à unidimensionalização do mundo, à massificação e à homogeneização cultural. Autênticos, pode-se dizer, por professarem e viverem valores vitais, colaborativos, por trabalharem com uma razão com mais substância que a razão instrumental, físico-matemática. Não sabemos o que Ortega pensaria disso, hoje. Talvez não concordasse com estas conclusões. Mas, como pensar era, para ele, aventura de entusiasmo raciovital, assumimos seu raciovitalismo como ponto de partida para a aventura da razão. Não como ponto de chegada, o que seria também um ortopedismo que, seguramente, Ortega desaprovaria. Assim, tendo como base o “nem racionalismo, nem vitalismo: raciovitalismo”, de Ortega y Gasset, temos a possibilidade de pensar em um programa raciovitalista para a superação do problema da massificação nos tempos de hoje. Tempos em que vivemos um híbrido de era pré, industrial, e pós-industrial, e em que a homogeneização cultural e a padronização de comportamentos começam a ser contestadas em todos os cantos do mundo onde haja acesso à internet e sua consequente possibilidade de ação em rede, não do ponto de vista utilitário e consumista, mas cultural: a cultura digital. Neste sentido, mais que a conexão física, obviamente fundamental, o que importa é a cultura de rede, a cultura colaborativa, pós-industrial e pós- massificante que vem sendo construída, pessoa a pessoa, nessas conexões. Em nosso entendimento ela, a cultura digital, é condição para revitalizar a própria ideia de cultura, pesadamente homogeneizada. Ela é condição de possibilidade de se desmassificar, “destampar” o vital da diversidade cultural, das culturas populares, do interior dos países (e seu conteúdo extremamente valioso do ponto de vista de uma metáfora daquilo que se tem dentro, que tem entranha, que tem conteúdo, em vez do superficial, ostentatório, distintivo ou apenas mercadológico da cultura de produção fordista para consumo de homens-massa). Há uma razão sendo produzida nas redes, que não é apenas técnica nem puro vitalismo irracionalista, mas uma razão que vem da vida (de milhões de vidas de indivíduos eu-circunstâncias em rede), com um potencial enorme de trazer novos valores à tona. Se, como disse Ortega y Gasset no início do século XX, o sujeito é um eu-circunstância, devemos considerar a circunstância atual de intensa conectividade ponto a ponto. Nessa, não mais pela pedagogia social de minorias, mas pela exemplaridade da participação ponto a ponto, o homem-massa da sociedade massificada tem condições de se tornar um pós-homem-massa, desde que utilize as novas tecnologias para gerar autonomia, em vez de se utilizar dos mesmos para gerar heteronomia, homogeneização e consumo massificado. O ambiente digital provoca, com suas possibilidades, o homem a fazer novas narrativas de si próprio, em termos de valores, propriedades, ideia de si e da sociedade etc. O digital é uma nova circunstância. Se o homem-massa é produto da era industrial que gerou o chamado “fenômeno do pleno”, o consumo em massa e a homogeneização da cultura, é preciso pensar se as mudanças tecnológicas do nosso tempo, com a emergência da internet e das redes também não dão condições para uma superação do problema criado pela relação desresponsabilizada do homem com os produtos da técnica daquela época, bárbaros a colherem seus produtos, como em estado de natureza. Conseguirão os sujeitos de hoje utilizarem estes ambientes de rede de forma a gerar autonomia e sujeitos-redes, indivíduos-redes, eu-circunstâncias-redes, ou, ao contrário, o rearranjo do mercado conseguirá repor o quanto de elemento homogeneizador necessita para a sociedade continuar sendo massificada?

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