domingo, 22 de maio de 2011

Sobre a queda do prestígio do livro

Em "O livro e a Invenção da Modernidade", Claudius Bezerra Gomes Waddington aborda o tema O livro como lugar de resistência do pensamento, no qual afirma que, assim como passamos, hoje, por uma revisão do pensamento moderno, o principal instrumento da modernidade, o livro, está enfrentando idêntica crise. Para Waddington, nas últimas décadas...

"(...) a ascendência político-social e cultural do livro” passou por uma rarefação, perdendo, junto com o intelectual, a sua ‘aura’, o que pode ser notado em como esses têm dado seu lugar aos chamados “formadores de opinião.

Conforme Waddington, com a perda da aura do intelectual (ou do filósofo, construtor de conceitos), os formadores de opinião (de doxa) tomaram conta do lugar do livro e do intelectual. Junto com esses primeiros, os meios de comunicação mais modernos passaram a ter mais lugar no imaginário popular que o livro, ligado a outro sujeito social, o intelectual, em decadência. No entanto, como os interesses das grandes corporações, e entre elas, os conglomerados de comunicação, se fixam não pelo conhecimento, a episteme, mas pela opinião, a doxa, ou seja, por meio da propaganda e da comunicação, certas correntes de pensamento mais próximos à produção de doxa que de episteme - ou seja, mais otimistas com relação a esses meios, e não com o livro e o intelectual - acabam ganhando mais espaço social, no mercado, na universidade e, num círculo vicioso, nos próprios meios de comunicação. Obviamente que, nesse contexto, os pensadores do chamado pós-modernismo, mais afeitos à opinião que ao conhecimento, ganham mais espaço na mídia e na escolas, em detrimento da modernidade. Diz Waddington:

"A cena tardo moderna não reconhece mais as credenciais dos intelectuais para diagnosticar as mazelas da civilização, nem para fazer a prospecção das mutações sociais. A não ser que eles sustentem discursos que corroborem os interesses das megacorporações financeiras, de capital volátil e sem pátria e que não questionem a injustiça social embutida no processo de globalização."

Junto com o questionamento da modernidade, questiona-se também seu principal instrumento: o livro.

"Cumpre indagar se este fenômeno não estaria igualmente contaminado pelo descrédito em que caiu o edifício de verdades, laboriosamente erigido pela metafísica ocidental, e de que o livro foi o incansável arauto e o intrépido paladino. O espectro da crise que corrói os modelos clássicos de pensamento projeta-se sobre o livro. Talvez, a queda de prestígio do livro corresponda à busca de uma abertura do pensamento, enquanto novas modalidades de exercício crítico e de reformulação do conhecimento são experimentados. A insustentável asfixia do ambiente acadêmico a que conduziu a excessiva especialização dos campos do saber, não poderia perdurar por muito tempo. Enquanto soçobram os sistemas fechados de pensamento e o relativismo avança, a civilização do livro é chamada a depor. Ela é intimada a declarar as causas que abraçou e as alianças que selou. Desde a aurora da modernidade, a secularização foi sustentada pela civilização do livro como condição para a liberdade, ao mesmo tempo em que a aliança com as elites intelectuais imprimiu-lhe uma inflexão paternalista utópica da qual ela jamais logrou se desvencilhar. Agora que a baixa modernidade lança um severo olhar de desconfiança sobre os grandes valores da modernidade plena, o livro surge destituído de seus poderes insurrecionários. Talvez agora, despido das ilusões em que se viu envolto por tantos anos, ele consiga levar a cabo a tarefa de emancipação que é sua por opção, direito e vocação. Emancipação que a renascença desencadeou e que o iluminismo resgatou e reformulou de forma mais consistente. O projeto emancipador do livro persiste confirmando sua função de resistência à unidimensionalização da existência."

Waddington esquadrinha nestas passagens algumas das mais importantes questões que se põem na atualidade sobre o tema formação de uma sociedade leitora. A seguir, pontuo algumas delas:

1. O debate sobre políticas de leitura passa pelo embate teórico entre modernidade e pós-modernidade, o qual, em nosso entendimento, precisa ser superado, a partir de uma reforma do conceito de razão, como propunha Ortega com sua idéia de Razão Vital.

2. As teorias pós-modernas, que não questionam o atual estágio da globalização econômica, garantem seu espaço na mídia, na medida em que suas teorias em geral ou fazem um elogio a esses meios ou simplesmente naturalizam a tecnologia e o capitalismo.

3. A queda do prestígio das verdades da modernidade afetou também o livro, seu principal instrumento.

4. A forma de se recolocar a importância do livro como instrumento fundamental para a emancipação é livrando-o das ilusões racionalistas da modernidade, articulando-o com o vital. Nem vitalismo, nem racionalismo: raciovitalismo.

5. A asfixia do ambiente acadêmico decorre, como já diagnosticou Ortega, da especialização dos saberes.

6. O livro é um instrumento imprescindível para resistir à unidimensionalização da existência, ou seja, para resistir ao que Ortega chama de existência inautêntica, a do homem-massa.

sábado, 21 de maio de 2011

"A rede é nossa e a rua também", diz a Spanish Revolution

A cada nova manifestação articulada pela internet, como a espontânea e bem-humorada Spanish Revolution em curso, penso no que tem contribuído o processo Fórum Social Mundial para a forma de se fazer política hoje em dia. Não tenho dúvida de que o "espírito de Porto Alegre", a rodar pelo mundo nas tantas edições do FSM, tem contribuído como inspiração constante para esses movimentos. Acabo de receber um e-mail de amigos da Espanha (Vicente Jurado etc) dando conta de como estão as coisas por lá nesses dias em que a juventude vai para as ruas, mais uma vez organizando-se pelas redes sociais, sem interferência de partidos ou sindicatos. Cerca de 25 mil pessoas acampam desde quarta-feira na Plaza del Sol, coração da querida Madri, com suas bandeiras e o colorido sempre vivo da juventude madrileña. Protestam, cantam e vivem, estimulados pela possibilidade de transformação do mundo, em tempos em que a tecnologia potencializa cada vez mais que as multidões se organizem por si mesmas, sem depender de lideranças e da verticalidade das organizações tradicionais (o mesmo aconteceu no início da semana em São Paulo, com o Churrasco da Gente Diferenciada a protestar contra o preconceito da elite paulistana e ontem à tarde no Chile, quando mais de 40 mil manifestantes - a maioria jovem - se concentrou na praça Itália, no centro de Santiago para protestar contra a construção de hidrelétricas na Patagônia chilena). O que importa disso tudo é que, no ritmo em que a internet evolui e o acesso a este instrumento de comunicação se universaliza, não apenas cresce uma maneira de se organizar tais encontros, como se vê pipocar aqui e acolá conteúdos libertários. Pergunto-me sempre se os dez anos de Fórum Social Mundial não começam agora a dar seus frutos para além dos governos que absorveram alguns dos seus conceitos, chegando a uma juventude que organiza sua pautas em muitas das linhas de ação que têm grande visibilidade no processo FSM. A principal delas é a democracia direta, a qualificação da participação e o controle público dos estados, cada vez mais fáceis por meio da teconologia. Mas o consumo crítico também está presente, a liberdade de ir e vir, a livre orientação sexual, a economia solidária, as pautas ambientalistas e a diversidade cultural, entre tantos outros temas do Fórum Social Mundial que se podem ver em cartazes e nas manifestações individuais e coletivas desses ativistas. Indo para o seu décimo primeiro ano, valeu a pena tanto esforço para a realização desses momentos de compartilhamento de uma idéia de outro mundo possível, um outro mundo que espanhóis, franceses, egípcios, brasileiros, tunisianos etc têm visto como única alternativa para o atual estado de coisas em nível global. Sim, acampamos e acamparemos, diz o e-mail que comparto a seguir:


"Yes, We Camp!

Queridos amigos/as,

Queremos compartir con cuanta más gente mejor, estos momentos que
estamos viviendo como inolvidables en la #spanishrevolution [1] y
queremos hacer esta protesta aún más global.

Con este correo queremos animar a convocar más acampadas fuera del
estado español.

Lo que está pasando en las distintas ciudades españolas no es casual ni
específico de nuestra sociedad: luchamos por recuperar la dignidad, por
la libertad y la justicia social, por la democracia directa, por
participar en el rumbo de nuestras vidas. No somos borregos y parece que
nadie se da cuenta. Somos una red, no necesitamos líderes por eso
queremos que en cada lugar tomes la plaza, pienses por ti mismo/a y con
otros/as, las alternativas a ese mundo mercantilista, inhumano, suicida
y cancerígeno a los que nuestros gobiernos están llevando al planeta y a
todos nosotros/as que nos quieren hacer creer que todo se mueve por dinero.

Para nosotros/as las fronteras no existen, la red es nuestra y la calle
también!! Otro mundo es posible ya!

Entonces proponemos que reenvíes este correo y nos organicemos con
nuestros colegas, grupos de afinidad, familiares, etc, para
manifestarnos en nuestras plazas para exigir un cambio real en nuestra
sociedad. Creemos juntas estos espacios de protesta, encuentro,
pensamiento, cuestionamiento, acción y cambio, a escala global, en red y
todos/as a una.

Más concretamente os proponemos que acampemos en nuestros diferentes
países a partir de este próximo día:

- viernes a las 17:30, Plaza de Mayo, Buenos Aires, Argentina
- viernes 19 horas en Varsovia
- XXXXXX, a las XXXXXXX en la plaza XXXXXXXX (por aquí otras
convocatorias en tu país antes de reenviar)
- más convocatorias: http://www.thetechnoant.info/campmap/

Usemos las redes sociales para coordinaros y manteneros informados/as.
Por favor adapta y reenvía este correo a tus amigos/as (en tu país o de
fuera de tu país).

Que se vayan todos, democracia real ya!

Abrazos/Besos/Saludos,"

terça-feira, 17 de maio de 2011

Olho de robô

Steven Pinker diz, em Como a Mente Funciona, que um robô nunca vê, ao contrário do que querem nos fazer crer alguns filmes por aí. Na verdade, nas histórias de ficção científica, o efeito correspondente ao olhar das máquinas é produzido com lentes grande-angulares ou retículas de fios cruzados que eles colocam na tela. Mas essas imagens, supostamente as visões dos robôs, que vemos na tevê, aparecem apenas para nós, humanos, que já possuímos um olho e um cérebro funcionando, e que podemos captá-las.
Nas entranhas de fios de um robô, não se vê nada a não ser uma série de números, cada um correspondendo a um brilho entre milhões de retalhos mais escuros ou menos. Mas talvez seja tão impossível que os robôs enxerguem até mesmo isso quanto, ao tentar abrir alguém vivo de verdade, vermos sua alma lá dentro. Os números, afinal, são apenas descargas eletrônicas. Era isso o que eu tentava dizer a XY8, àquela noite agradável de novembro, num bar da Rua da República...
- Você me vê, mas não me vê, entende, XY?
Ele não respondeu, acho que um tanto magoado. Olhou-me de um jeito amargo e ergueu o braço para pedir outra Polar. A noite de primavera estava agradável para uma conversa. As mesas, na rua da República, apinhadas de gente que sorria, bebia e trocava olhares com os habitantes das ilhas de metal mais próximas. Retomei, ante o bocejo de XY8:
– A questão é que, na verdade, vocês são completamente cegos, por mais que possam identificar formas e movimentos em seus mais delicados detalhes, com mais precisão até do que nós...
Eu queria dizer a ele que, mesmo vendo, eles não vêem. Mais do que isso. Não enxergam nem mesmo os tais números que existem dentro de suas cabeças! Como veriam, se não existe nada entre eles e as coisas? E isso pelo simples fato de que eles, afinal, também são coisas. Se nós, os humanos, atribuímos a objetos de fios e placas de metal algumas sensações que temos, só pode ser por certo desespero, angústia por estarmos sós no universo.
- Não acha? - concluí.
Ele concordou, com a cabeça. Ainda mudo, no entanto, enfiou mais três botõezinhos de amendoim na boca e limpou as cascas que caíram sobre o colo. Tomei novo gole de Polar. Então, continuei, mudando um pouco o foco do assunto, que não parecia ser muito de seu agrado. E eu sei quando começo a ser chato.

– Você, que gosta de poesia, XY. Penso que pelo menos um tipo de poesia não passa, tal qual a filosofia, de uma técnica retórica de se referir às evidências de modo avesso, de maneira reversa, cuja principal ilusão é ver dotadas de vida coisas que não o são. E a filosofia tem esse mesmo desejo, mas não a mesma coragem.
Foi então que XY8 interrompeu, com sua voz rouca, pausada. Fiquei feliz por ver que ele queria falar:
– Máquinas e pontes, estradas e janelas, rios e estrelas, fábricas e calçadas, muitas vezes vi-as se moverem por meio de figuras de linguagem, que imaginei serem o centro da poesia. Confesso que, por pouco, a vaidade não me fez ver resolvidos todos os enigmas, via literatura, não fosse o problema crucial de que as palavras, infelizmente, não são as coisas. Que tudo o que se fala é apenas aquilo que se fala, que não há relação do que é dito com os objetos, como imagina, por exemplo, a iludida filosofia. Não é isso o que queria dizer?
– Exatamente. Exatamente. E nessas mesmas palavras...
 Não te parece, então – ele retomou - que o problema de vocês seja o inverso do nosso, o que os envolve em idêntica cegueira? - assinalou. Acrescentou que, para ele, éramos apenas sujeitos e que nossa ponte com o objeto estava quebrada. Assim, tudo o que olhamos levaría-nos, por isso, a inevitáveis ilusões. Também disse que, se só podemos enxergar por dentro dos próprios olhos, como, desse modo, poderíamos saber se chegamos, de fato, às coisas reais lá fora? E deu um exemplo: as cores... Poderíamos, nós humanos, dizer que elas são o que são fora de nós? Não é possível ter certeza. E se os robôs vêm números ou nem mesmo isso, parece que nós vemos algo que está apenas dentro da gente, de nossa carne, de nossos nervos, mas não nas coisas. Seríamos, assim, tão cegos quanto os robôs. E desferiu o golpe final:
 Para nós só existem coisas, para vocês, só vocês, Guilherme.

Meu amigo robô é, de fato, uma grande companhia. Fantasma cibernético da Cidade Baixa, encontro-o quase sempre, rodando de bar em bar pelas belas ruas do bairro, à procura de bons lugares para beber, conversar e se chatear o mínimo possível. E há lugares realmente legais. A República já foi uma deles, a Lima e Silva, aquela coisa, que vai se transformando num mar de gente de gosto cada vez mais duvidoso a cada ano que passa. Mas há ruazinhas e bares escondidos, legais e distantes da turba.
De vez em quando tem shows de jazz, inclusive, mas o interessante, mesmo, é a confluência das esquinas mais estranhas de Porto Alegre. Na frente do Opinião, a José do Patrocínio junta, um de frente para outro, bares de metaleiros, surfistas, playboys, pagodeiros, roqueiros etc, num espaço de menos de 100 metros. Um mergulho ou outro por ali é interessante, mas nada mais que uma boa meia hora e já se começa a sentir o cheiro da puerilidade, do prosaísmo que exala mais forte que o das bebidas baratas.
Entretanto, como costuma acontecer, eu e XY8 já tínhamos pago a conta e perambulado por outros bares, tentando reconhecer algum amigo no meio da massa. Acabamos pulando como dois sapos naquele ambiente, esperando que um bar de boa black music com algumas das pessoas mais interessantes da cidade abrisse. No boteco da frente, continuei a conversa, já em outro tema, como sempre.

Perguntei a ele se, em sua opinião, o artista pode pensar não apenas por sínteses e analogias, mas também por análise, como seus colegas cientistas e filósofos. Respondeu-me que achava que não, que a análise só pode dar como resultado o que já está contido no objeto, o que, como todos sabem, impossibilita qualquer descoberta de algo que esteja fora dele.
- O que um poeta iria querer com isso? - acrescentou.
– Exato! A síntese, ao contrário, pode fazer surgir algo que não estava contido completamente na coisa analisada. Os poetas têm a metáfora como instrumento. Pela comparação, pelo transporte, pelas relações estranhas entre objetos e palavras chegam, às vezes, a esse resultado a que chamam de arte.
XY8 comentou:
– Como sempre queres dizer que as relações analíticas são mais prosaicas que as sintéticas, e que eu como produto da ciência não sou poesia, como tu, que és humano...
- Ora, isso não é óbvio, XY?
Mas eu não falava disso. Queria dizer que a arte reside exatamente em poder fazer com símbolos um fio imaginário entre os objetos. Disse a ele que não me parece haver outra forma de enxergar o poético do que renunciando, então, à comprometida análise, e saltando, no escuro, à espera de que exista algo entre as coisas, que só pode ser “pego”, “visto”, “ouvido”, “sentido” por essa ponte frágil. Acrescentei que a poesia me parecia um instrumento como teia de aranha, a agarrar o homem invisível, o universo invisível que supostamente existe entre os objetos. Talvez alguém na universidade pudesse retucar se isso não se trata de uma irreverente metafísica, de um simples método de investigação que não consegue se livrar do estranho, do resíduo, dos ruídos e até das ilusões.
- Uma lógica precária? - ele perguntou.
- É. Mas este não compreenderia a aventura da arte como, também ela, um salto de fé no abismo entre as coisas. E os poetas não se dariam por contentes com uma explicação destas, com tão pouco, obviamente. Eles querem mais, querem ser deuses.
– Não percebes – ele sorriu – que é exatamente assim que, com nossa ilusão, com nossa cegueira, enxergamos, nós, os robôs? A arte é um fio de aço estendido no precipício, sim – ele sublinhou - O artista está ali em cima. No íntimo não nega que não vê nada entre o vazio, nem mesmo a corda a seus pés, e que só o segura o medo de cair e não pegar nada. Ele é como nós, que enxergamos dígitos, talvez nem isso. Mas uma fé o sustenta para que não caia no vazio, lá embaixo. O artista é o que anda sobre as águas, o que dá passos no ar, o que, equilibrando-se sabe-se lá onde, faz aquilo funcionar: a ponte invisível entre as coisas, por onde ele, então, dá mais um passo, e outro e outro, até chegar, são, mas nunca salvo, do outro lado.
Pensei naquilo, atentando para a maneira como seus olhos brilhavam. Pareciam os de um profeta, um louco, ou mesmo um místico iludido por sua própria arte de ilusionista... Olhos de robô, que não vêem nada, nada, os de XY8... Deu-me uma pena.

Meia dúzia de caramujos

- Où y a-t-il ici une discothèque?
- Monsieur!
- Porquoi? Porquoi? Ah! Ah! Ah!
- J'aimerais un diverstissement.
- Venha. Entre rápido, antes que ela veja. Anda, Magra.
- Calma, já estou indo! Já disse que não consigo correr com esses sapatos...
- Fale baixo. Aqui, no balcão... O que você quer beber?
- Nada... Não: uma cerveja.
- Diverstissement! Diverstissement! U-la-la!
- Deux bières, s'il vous plaît!
- O que você acha que pode acontecer, Magra? É só ficar na sua que tudo vai sair bem. Já disse que vou resolver... Você precisa ter calma. Agora me conte: o que você fez com os caramujos?
- Monsieur!
- Yes, yes...
- Merci.
- Temos que ir embora de uma vez, Carlos. Vou hoje, mesmo. Eu juro! Não quero ficar mais um minuto, aqui. Pô, em Paris! E você me prometeu que teríamos uma semana tranqüila, depois de tanto tempo sozinha... Mas, como ela descobriu? Você só pode ter deixado algum furo, Carlos, lá em Goiânia.
- Magra.. Quero saber dos caramujos. Se ela veio até aqui é porque descobriu. Onde estão os caramujos!?
- Place Saint-John Perse, Les Halles, u-la-la.
- Estão lá em cima, na mala, em cima da cama.
- Tá louca?
- Ia dar um jeito nisso agorinha mesmo, quando ela chegou.
- Merda!
- Eu estava esperando você que, pra variar, não aparecia nunca. Onde é que andava?
- Estava dando uns telefonemas pra ver se resolvo tudo junto... Agora vai ter que ser assim mesmo...
- Pois eu fiquei de saco cheio de esperar lá em cima e resolvi dar uma descida. Foi minha sorte. Olho pro balcão e tá lá ela.
- Certo que ela não te viu?
- Où sommes-nous? Où sommes-nous?
- Não, não me viu. Perguntou pelo seu quarto, para o rapaz do balcão que, sem entender, tentava, acalmá-la. Minha sorte é que aquela língua conhecida me chamou a atenção.
- Quel?
- Ahm, Heineken.
- Oui.
- E o que ela falou?
- Não sei direito. Voltei pra perto do elevador e fiquei lá. Ouvi ela perguntar pelo seu nome. Chamou você de ladrão, de picareta. E eu de vagabunda... Fiquei uns bons cinco minutos esperando ali depois de ela sair... Mas, como é que ela descobriu que vínhamos para cá e justamente para este hotel?
- Eu... disse que estaria em Paris pra uma feira de couro e calçado, que realmente está acontecendo aqui perto. Ela deve ter descoberto e procurou o endereço com o pessoal do escritório... Só pode ser isso.
- Carlos. Escute aqui: quando é que nós vamos poder cair fora, hem? Até quando eu vou ter que me esconder? Há dois anos! Nunca que vai resolver isso... Eu não quero mais saber desta situação...
- Magra. Agora, com mais essa leva de caramujos, vou poder resolver tudo. Calma. Só que ela não podia ter descoberto. Não agora!

- Olha, já decidiu como vai ser? O Daniel?
- É! O Daniel. Pensei melhor, enquanto esperava você chegar... Mas vamos ter que dar uma parte da grana pra que ele não abra a boca... Quis quase 40% de tudo. Ofereci 30%. Fechamos em 35%.
- 35%!? Um punhado de caramujos!
- Mas se não for ele, ele nos entrega, é claro. Já sabe das outras... Então, amanhã à tarde, às 15h, o Daniel vai até o quarto da Silvia. Aparentemente será um ladrão, que vai matá-la para roubar dois caramujos...
- Idiots.
- Oui.
- Eu quero a sua mulher morta, Carlos. Não importa como... E logo... Eu quero viver em paz com você, só isso.
- Tróis bière, sil vous plaît.
- Deixa comigo. Por dois caramujos... Então, ela também veio atrás dos caramujos! Aqueles lindos caramujos vermelhos e brilhantes...
- Do you have red vine, monsieur?
- Crôque madame, please.
- Carlos... Tem certeza que ninguém está entendendo o que estamos conversando?
- Não se preocupe, muito dificilmente alguém aqui entende português. Fica fria. Quanto ao hotel... Vou ter que ver outro. Dou um jeito nas suas coisas e, paciência, o que podemos fazer? Despacho as malas pra Zurique... Amanhã, quando tudo estiver acertado, eu vou atrás.
- Deux bière, monsieur.
- Sim, mas cuidado com os caramujos.
- Deixa... Tranqüila... ...comigo... Do que adiantou todos esses anos como uma sovina?... ...sem gastar aquilo tudo... ...matá-la.
- Você viu, Carlos, este cara aqui no balcão?
- Quem?
- Aqui. A toda hora ele parece olhar pra gente. Estou com medo... Meu Deus, chegou a me dar um arrepio. Será que não está entendendo o que a gente fala? O jeito que nos olha... Parece até que vai dizer alguma coisa a qualquer momento.
- Deixe disso, Magra. Ele... ...na dele, fumando, bebendo.... chopinho. Em todos os casos, vamos embora...

Paguei minha conta e levantei-me a tempo de vê-la saindo. O vento esvoaçou seus cabelos pretos, lindos, quando o garçom escancarou a porta. Através do vidro, vi o homem fazer sinal para um táxi e beijá-la rápido, com lábios que pareciam moles de preocupação. Ela acomodou-se no carro e puxou o casaco antes de fechar a porta. Quando deu a volta em direção ao rio, ele acendeu um cigarro e baforou contra a luz uma fumaça grossa. Assim, ele tomou, a pé, a rue Saint-Lazare.
A temperatura forçou-me a levantar a gola do capote. Por duas quadras eu o segui, um tanto atrás, às vezes incomodado por seus passos lentos demais, de quem, ao que parecia, ainda precisava se decidir por algo. Eu já sabia bem o que queria: uma meia-dúzia de caramujos e o telefone da tal da Magra, na Suíça. Ou contaria tudo o que tinha ouvido à polícia. Que sorte! Com a crise, eu já estava decidido a desistir da Europa e voltar para São Paulo! Dois anos enfiado embaixo da terra, como uma toupeira tocando nos túneis do metrô. E nada.
O hotel ficava em frente à gare Saint-Lazare, no bairro da Ópera, e eu caminhava devagar para evitar produzir a cada passo qualquer barulho. No que percebi para onde ia, apressei-me. Ainda ouvi o rangido da porta de vidro se fechando antes de ele chegar ao balcão. Evitei que ela batesse e no momento em que ele pegava a chave, toquei-o no ombro... Ele virou-se gelado como se visse um fantasma. (Jéferson Assumção)

Plataforma Kune, pronta

Depois de anos de trabalho, finalmente os espanhóis Vicente Jurado, Samer e outros amigos terminaram sua hercúlea tarefa de desenvolver a plataforma Kune (juntos em Esperanto) esta semana. Gente boa demais, eles trabalham colaborativamente para gerar mais possibilidades de os trabalhos colaborativos se desenvolverem. Este é um dos resultados a que chegaram:

http://kune.ourproject.org/
a post from Samer explaining our last efforts:
http://kune.ourproject.org/2011/05/kune-sees-the-light/

e a demo (beta) aqui:

http://kune.beta.iepala.es/ws/
http://comunes.org
http://ourproject.org
http://homes.ourproject.org/~vjrj/blog


"Hi there friends,

After so much work these years, we finally started today to give some
diffusion to the public of our project Kune.

You can see an brief intro here (thanks to Samer and Rana):
http://kune.ourproject.org/
a post from Samer explaining our last efforts:
http://kune.ourproject.org/2011/05/kune-sees-the-light/

and a demo (beta) here:
http://kune.beta.iepala.es/ws/

Our last idea is to try to mix all our efforts, that is:
- To integrate Move Commons in kune (having a wizard similar to the
license wizard) so groups can define themselves (like can define how
share its works).
- The integration of troco as a barter system allowing to people that
want to participate to show the service/goods they share... (and allow
to search then).
- Massmob integration allowing to organize meetings/flashmobs/etc
between the members of a group/project/initiative.

there are already a lot of work to do, but seems that it's a good
"start". Now with the difficult parts developed, it's easy and fast to
continue.

We started to see some nice comments, for instance some one in the Wave
mailing list:
«That looks very very impressive - probably the most significant
wave-federating project I've seen and certainly not only a wonderfull
tool in itself, but a big boast to wfp in general!»
http://mail-archives.apache.org/mod_mbox/incubator-wave-dev/201105.mbox/browser

and after such big effort, it's very pleasant to read it.

Anyway thanks to all for your comments, support, etc, etc, etc. Feedback
and comments welcome.

Bests,
--
Vicente J. Ruiz Jurado"