domingo, 18 de julho de 2010

Recomendação do blogue

Blogue de viagens meu e da Cecília

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O movimento silencioso dos lítero-ativistas

Quando, no final da Idade Média, os leitores se deram conta de que podiam ler em silêncio, teve muita gente que não gostou. Os padres, por exemplo, temerosos de que não pudessem mais controlar o que os estudantes estavam lendo, chegaram a proibir a estranha prática.

Enxergavam nela um potencial subversivo. Até então, as bibliotecas, segundo conta o escritor argentino Alberto Manguel, em seu famoso "Uma História da Leitura", eram alguns dos lugares mais barulhentos do mundo. Afinal, como as palavras eram vistas desde a antigüidade como representações gráficas de sons, os leitores as reproduziam em voz alta na hora de ler. De repente, se deram conta de que podiam fazer a mesma coisa bem quietinhos. E calaram. A barulheira que o leitor ouve, ao decodificar os sinais, passou para dentro do cérebro e o mundo viu nascer um sujeito silencioso que podia gritar e bradar o que quisesse, em silêncio. Pois esta velha prática, a decodificação silenciosa de 25 símbolos, sofre uma decadência desde o século passado, substituída pela (ou tendo que conviver com a) audiência da televisão e do rádio, do cinema e do computador. E de certa maneira, a leitura hoje voltou a ser como na Idade Média: menos íntima (ensimesmamento) e mais barulhenta (alteração horizontal, diria Ortega y Gasset). Como, num mundo multimeios, um meio de que não podemos prescindir é a leitura - como diz Renato Janine Ribeiro - precisamos estar atentos para este fato da cultura atual.

Hoje, quando mais se precisa dela (a leitura ensimesmada, transformadora, cultural, para além da funcional), num mundo muito mais complexo que antes, este tipo de leitura vem perdendo seu espaço.

Ora, dirão, mas não há mais leitores, hoje? Sim, as pesquisas mostram (especialmente a Retratos da Leitura no Brasil - Instituto Pró-livro, 2008) que há mais leitores hoje que talvez em toda a história do Brasil. Mas também mostram que esses leitores têm em geral uma relação instrumental com a leitura. Leem com respeito a fins, obrigados, não por um hábito cultural. Leem o que o mercado dita que deva ser lido, via poderio da propaganda. E quando saem da escola, deixam de ler.

A leitura funcional (utilitária, pragmática) se consolida e avança, para que os consumidores possam utilizá-las nos manuais, para operarem máquinas na indústria e no coméricio, para utilizarem PCs e mensagens de telefone. Há alguns anos, estive no Quênia e me disseram que os celulares com SMS não se desenvolviam no país devido ao altíssimo índice de analfabetismo. Seria preciso que aprendessem a ler. E de fato, lá (como aqui?) as escolas vinham cumprindo cada vez mais este papel para o mercado, ensinando aos africanos a ler funcionalmente (com conteúdo técnico-instrumental), mas não funcionalmente (com conteúdo crítico, vital). Por diversas e profundas causas, a começar pelos interesses de manter um povo em uma dimensão pré-crítica (como aqui, desde que os acordo MEC-USAID extirparam do currículo todo conteúdo crítico-artístico-filosófico-sociológico, na militarizada década de 60), muito dificilmente conseguem desenvolver a leitura para além do domínio rudimentar de códigos necessários para a "inclusão na modernidade", eufemismo para fazer parte do "mercado de consumo".

No Brasil, a partir dos anos 60, diminui, na escola sem dimensão crítica, a possibilidade de formação da leitura cultural. Ante a sociedade de consumo desenfreado e extrativista dos bens da natureza, nosso principal instrumento para sua superação vai sendo minguado à força de acordos e sofre para reagir (mesmo individualmente) aos valores da sociedade, dominada ideologicamente (pelas armas, antes, e pelo mercado, depois). Nascido no mesmo ambiente, o poderio dos grandes grupos de comunicação orienta cada vez mais para o consumo desenfreado dos produtos impostos "democraticamente" pela hegemonia de uma estética de massa e seu barulhento fordismo cultural, a fragmentação e tecnização da educação (fatiada e transformada em ensino) para servir ao modo de produção. Achata-se assim a possibilidade de desenvolvimento deste velho hábito silencioso humanista.

Peça de resistência, a leitura ressalta como ponto arquimédico e praticamente único lugar onde o sujeito do século XXI pode se apoiar, resistir e defender valores solidários contra a estridência arrogante ao redor. “Não sondamos ainda as potencialidades sinistras do cinema e do alto-falante”, alertava I. A. Richards em "Princípios de Crítica Literária", em 1924. Vislumbrava os efeitos nefastos que eles poderiam causar ao hábito silencioso. Estão aí. Os sujeitos dos países pobres só têm na ampliação de seus repertórios e de suas possibilidades de ação no mundo uma saída para resistir a uma indústria da cultura que berra o que quer, com a força de quem pode chegar a todos os cantos do mundo.

Além disso, depois do período do Estado à força, com o seu esfarelamento nas décadas subsequentes, a escola ruiu com ele. Mesmo dentro da escola, resta aos estudantes, infelizmente, quase que a aposta na educação pessoal, autodidata, possibilitada pela leitura. E é com ela que se poderá fazer alguma frente à transformação da cultura em um entretenimento fácil, que na verdade é a mercantilização do ócio dos trabalhadores: negócio, negação do ócio. Assim, o leitor se auto-educa, não por um capricho autonomista, mas porque, de fato, no meio do deserto, encontra pouco remédio.

Entre as populações pobres, ao menos, não parece haver outra solução do que ampliar seus horizontes pela leitura cultural. “Tá dominado, tá tudo dominado”, cantavam nos morros do Rio de Janeiro. A barbárie impera onde os últimos tijolos do Estado foram roubados (pelos que estavam dentro do Estado). A escola (e a sociedade) fracassa e meninos e meninas arrogantes enchem as salas enfumados de vaidade, brandindo espadas vitoriosas e pisoteando ideais inertes. Heterônomo, com valores feitos de fora, pelos meios de entretenimento, o homem-massa domina com a violência de seus gestos e gostos. Liga a tevê no mais alto volume. Passeia com jornais repletos de sangue pobre, futebol e mulheres nuas. Impulso de vida e impulso de morte, equilíbrio e harmonia de tensões que antes faziam parte da arte, decifradas em silêncio pelos leitores, e que hoje rastejam nas calçadas barulhentas do mundo real. E isso não por uma questão de democratização, mas da demagógica dominação ideológica dos meios de entretenimento (sem dimensão cultural há muito os jornais não oferecem nada além da leitura funcional, desde sua página de polícia, passando pelo esporte, a cultura - chamada convenientemente de variedades - até a política. A própria crítica deixou as páginas dos jornais e revistas para as aduladoras resenhas de propaganda das novidades literárias, musicais e audiovisuais). O século XX desmontou os critérios da arte. O mercado agradece e dita, ele mesmo, o que é bom e mau, o certo e o errado.

Mas o jogo nunca está perdido se estamos falando de seres humanos.

Pois apesar das circunstâncias, do barulho, o sujeito é sempre um espaço de liberdade para além delas, um espaço onde pode estar em silêncio. E pensar. Ou não é sujeito, mas objeto, determinado a responder mecanicamente a certos impulsos, na base do grito. O pragmatismo utilitarista golpeia o sujeito-leitor (leitor do mundo, animal hermenêutico), soterra-o embaixo de uma série de pesadas condicionantes, materiais, morais, legais, intelectuais. “O homem pobre não é livre”, dizia o filósofo gaúcho Gerd Bornheim, vive apertado em suas circunstâncias, quase paralisado, mas mesmo assim exerce alguma liberdade. Ou não é humano.

Sempre lhe restará uma saída, ou um livro (daí a necessidade de amplas políticas de acesso a livros, com bibliotecas centros culturais). E é nessa esperança, nessa fé ao ser humano, que reside a confiança em que ele pode encontrar uma solução libertadora. Posso pôr tudo em dúvida, mas não posso duvidar de que estou duvidando, dizia René Descartes, demonstrando em sua época um sujeito para além das causas-efeito do mundo. Este sujeito sucumbiu junto com a modernidade, destroçado pelas pesadas evidências ao seu redor. Em seu lugar ficou um sujeito determinado pelas circunstâncias, quase a ponto de ser um animal meramente mecânico.

Ortega não vai a este extremo e, em sua famosa frase “eu sou eu e minha circunstância”, mostra um sujeito que já não é o racionalista, nem o vitalista, mas um terceiro que é os dois juntos. O eu-circunstância é liberdade, é poder-ser outra coisa, é autodeterminação em maior ou menor grau, mas mesmo assim autodeterminação. Seguimos duvidando de tudo, como Descartes, mas a dúvida hiperbólica tranca no único ponto indubitável: o homem é, muitas vezes, um animal surpreendente.

Reside aí, neste único ponto seguro, a fundamentação de uma argumentação em favor da leitura como espaço de ação e a esperança na capacidade de reação, insubmissão, resistência e sabotagem leitora.

Por mais que o pragmatismo siga destruindo tudo ao seu redor, quando chega ao sujeito há uma parte dele que está fora do sistema, que não é circunstância, mas sujeito, um eu-com-as-circunstâncias (diria Ortega). É sua capacidade de fazer outra coisa apesar do que o meio condiciona. É a partir deste espaço de silêncio, que ele pode ler, que pode interpretar, que é livre.

No leitor-sujeito (leitor-vital, em contraposição ao leitor-massa, funcional), uma parte está para além do mundo barulhento; inalcançável, portanto, ao pragmatismo-capitalista. Não pode ser alcançado, pelo fato de que é sujeito, de que sua intencionalidade está voltada para outro mundo: o texto. O consumo de massa não precisa de sujeitos autônomos, precisa de sujeitos heterônomos. As editoras mais comerciais não necessitam de leitores-sujeitos, mas sim de leitores-massa, de consumidores de idéias superficiais veiculadas no suporte livro, como se fosse literatura. Mesmo assim, os leitores-sujeitos resistem e mesmo que só um restasse já seria suficiente para fazer toda a grande máquina girar ao contrário. Por quê? Porque o ser humano é lógos (palavra que quer dizer muitas coisas bonitas como ligação, razão e palavra) o mundo tem jeito, que o diga a indignação silenciosa que corre o mundo em diferentes direções pela internet, livros e revistas. Pois os litero-ativistas ligam-se a este movimento chamando a atenção para a realidade de milhões de pessoas cuja única saída contra o barulho ensurdecedor do medieval homem-massa tem sido a abertura de um livro, numa revolução pessoal e em silêncio.

Os leitores não têm mais Estado, não têm família (de leitores), não têm escola. Resta a intimidade, o eu-circunstância, como reduto de liberdade, onde, ademais de todas as circunstâncias, os homens e mulheres podem ser chamados a fazer as coisas de outro modo, por uma pecinha que têm dentro de si, chamada, desde que nos conhecemos por gente, de razão (razão vital).

Integram um exército de inconformados e realizam, cada vez mais, ações bem menos silenciosas. De todo o modo, são elas também ações de silenciosas redes de resistentes. Conectam-se e distribuem informações que não circulam pelos meios tradicionais, através de novas revistas e livros e de listas de discussão que correm o mundo no mais subversivo silêncio. A mesma subversão que compartimos neste momento. Psiu!

Daí o caráter revolucionário de nossa ação, sua real possibilidade de mudar o mundo, começando pelo que está mais ao nosso alcance: nós mesmos. O leitor é, concretamente, um campo de batalhas onde o pragmatismo utilitarista pode ser vencido e onde as mudanças podem começar já, terminada a mais nova leitura. É isso o que vem acontecendo hoje em todo o mundo quando mais um de nós acaba de ler algo novo. Nosso movimento é silencioso. É o de passar para trás, com calma, a página já lida.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Cirila de laranja, 1974

Em 1974, com minha mãe e meu irmão, comecei minha vida nômade, fisicamente me movendo pela Bola da Terra. Tinha quatro anos então, e saímos de Santa Maria para morar em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Quando o sino bateu e o trem deixou a maior estação do Estado, ninguém de nós tinha a menor idéia: na verdade, éramos levados não pelo trem, exatamente, mas pela industrialização pela qual passava o militarizado País daquela época.
Os vagões iam lotado de gente com suas esperanças de vida melhor. E, nesta corrida do aço, levas e levas de mulheres com lenços na cabeça e homens com malas de couro e crianças no colo desciam na estação Canoas, bairro Mato Grande, para trabalhar nas metalúrgicas. E não era só para a frente que o trem andava; ao mesmo tempo, a cada estação que passava deslocava para trás na plataforma milhares de outros. Entre os pobres, eram os mais doentes ou os que não podiam por um ou outro problema sair da vida rural. As cidades do campo, todas elas diminuíram. Boca do Monte, a nosa, murchou.
Em poucos anos, hordas de retirantes formigavam os entornos das capitais de todo o Brasil, em condições muito piores do que as vividas antes. Em dez anos todas as capitais brasileiras já estariam irremediavelmente transformadas. Em 20, eram já zonas de barbárie e subúrbios violentos. A circunstânca nos levou a nos estabelecermos numa casinha alugada, numa rua sem asfalto à beira do valão. A 15 km da Cidade Sorriso, como então chamavam Porto Alegre.



Percorremos 350 km em 12 arrastadas horas de trem. Os bancos eram de madeira, duros e frios, mas podiam ser virados um de frente para o outro, formando uma espécie de cabana entre os encostos. Minha mãe nos colocava ali embaixo, em cima de um cobertor, para brincar com homenzinhos de plástico e dormir, se conseguíssemos. Era impossível, por puro entusiasmo com tudo aquilo ao redor: cores e sons magníficos nunca vistos antes, como um cinema tridimensional de 180 graus.
Ainda por cima, o trem balançava divertidamente para os lados e parava e arrancava de 20 em 20 minutos. Era impossível descansar de tanta coisa boa.
Meninos com bacias tapadas por panos de prato ofereciam nas janelas, que os braços esticados trocavam por notas de cruzeiros. De vez em quando minha mãe aceitava um daqueles chamamentos e os trazia para nós, em dois pedaços, a barriga estribuchada da massa de um pastel. Mas nada muito forte: meu irmão tinha lábio leporino; eu, uma quase incurável infecção intestinal.
Meu pai tinha ido na frente e, ao conseguir emprego como ajudante de metalúrgico, enfim também nós atiramo-nos no chamado êxodo rural, com os poucos móveis no vagão de cargas. Lembro do quepe e do uniforme do fiscal picotando os bilhetes escorado nos bancos. Não esqueço o gosto da Cirilinha, o refrigerante de laranja de Santa Maria, que tomei enquanto os xis gigantes das estruturas de uma ponte de ferro passavam pelas janelas abertas.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Hack, política e cultura livre

Acho muito interessantes dois princípios da cultura hacker*. O primeiro é o da colaboração, às vezes anônima, em relação a um objetivo comum. Em diversas ocasiões (e certamente isso está acontecendo neste momento) vinte ou mais meninos e meninas espalhados no mundo todo e trabalhando sob um mesmo código fazem um game, uma tradução ou um programa de computador em semanas, de maneira lúdica e participativa. O resultado é partilhado por todos e utilizado, muitas vezes por milhares (até milhões) de pessoas, as quais eles sequer têm ideia de quem existam.

O segundo princípio é o seguinte: o que já está pronto, não faremos de novo. Copiaremos. Usaremos esta ferramenta virtual para produzir coisas novas. Assim, frente a um problema – um software para ajudar deficientes visuais a ouvirem livros, por exemplo – o primeiro que fazem é procurar em listas de correio ou num buscador de internet se um programa desses existe ou se está sendo desenvolvido em algum ponto do planeta. Se existe, ótimo: ´bora copiar, usar e testamos se funciona realmente. Se não funciona bem, o que podemos fazer para melhorá-lo? E só se ele não existe é que um praticante da filosofia hacker (hack são truques, inversões e sacadas novas que podem ajudar a resolver um problema) vai começar algo do zero. Às vezes passam meses, até anos, mergulhados em um gigante sistema de símbolos de uma cabala virtual indecifrável para nós mortais, a tricotarem um mundo absolutamente real, de ferramentas que podem ser utilizadas com nossos dedos e nossas mentes. E todo este esforço, de graça.

Mas o que eles ganham com isso, perguntariam o cético, o utilitarista e o pragmático? Por que se dedicam a fazer uma coisa dessas que não lhes dá nada em troca? Nada? Depende de que valores se está falando?

Este exército cada vez maior, que dia a dia cutuca o calcanhar de Aquiles do mundo da acumulação capitalista (por não estar nem aí para os seus valores), o faz pela vontade de colaborar, pela alegria de ver pronto, pela fruição de seu próprio espírito vivendo à margem da alienação do trabalho mercantilizado ou, finalmente, porque tudo isso, além do mais, dá prazer e vontade de continuar fazendo. Como um jogo do homo-ludens-sapiens-demens que somos quando não diminuímos o fim e o princípio de nós mesmos. E a fonte desses sentimentos é o oxigênio da criatividade, libertária e bela. Por baixo de tudo isso está uma visão de mundo com princípios arejados e arejadores e que, desde que encontrou condições tecnológicas para tal, se desenvolve à margem dos viciados códigos de um mundo real cada vez mais opaco e empobrecido.

Muitos desses hacktivistas o que querem é simplesmente mostrar para os amigos seus feitos de ativistas românticos. E por isso, constituem-se em uma geração de pessoas com valores muitas vezes (mas não necessariamente) à margem da cultura de massa e da violência subjetiva, simbólica, dos grandes meios de comunicação que falam com todo mundo, mas não com eles. Esses, falam mais entre si. Em rede.

Uma imensa parcela deles não tem televisão em casa, nem terá, porque acha este um equipamento eletrônico dinossáurico, muito pouco interativo. Softwares normais, proprietários, idem. Afinal, não os deixam mexer e fazer as coisas de maneira diferente, com sua criatividade e visão de mundo. O que quereriam eles com isso? Pois acredite: tem aí fora uma massa crescente de pessoas que passam a se relacionar com o mundo a partir de outros valores, concretíssimos valores vividos e que vêm deixando para trás, no mínimo no ridículo, aqueles que tanto enfeiam o planeta com sua alma pesada, cansada de tanto acumular e nada colaborar.

E eles estão na periferia. Não apenas nos Estados Unidos ou na Inglaterra, mas na Espanha, no Brasil, na Índia, países em que o uso de plataformas livres vem se desenvolvendo aceleradamente. Hoje, por exemplo, em milhares de cidades do Brasil inteiro, qualquer criança que chegar na Biblioteca Pública, e usar os computadores do telecentro estará entrando mesmo sem saber no mundo do software livre. Querendo ir atrás, poderá fazer dessa uma porta de saída para situações de vulnerabilidade social às vezes extrema, porque nos softwares livres as portas não estão cadeadas por códigos-fonte fechados. Daí a necessidade de se trabalhar com o conceito não de inclusão digital (inclusão como passivos consumidores de softwares proprietários), mas com o conceito de cultura digital, em que os usuários são participantes ativos da cultura livre.

O grande hack da cultura digital está em sua noção de propriedade privada. Como no mundo virtual, não há restrição material para a posse de um objeto (que pode ser copiado indefinidamente), na cultura colaborativa se fala - com um pouco de ironia, é claro - é da radicalização da propriedade privada, em vez de sua abolição. O mesmo com a liberdade...

E a cultura colaborativa começa a descer do mundo hakcer para o mundo real. Cada vez mais, em diferentes áreas, conceitos como de copyleft (o contrário de copyright, restritivo) e ação cidadã em rede são aplicados a outros cantos do conhecer e do fazer. Aqui no Rio Grande do Sul, desde o 1º Fórum Social Mundial até o descentralizado, em 2010, temos o privilégio de conhecer várias dessas alternativas concretas em curso. Pra ficar em alguns: Zaira Machado e Antonio Martins (no jornalismo), Senhor F, Éverton Rodrigues, Teatro Mágico, GOG e as Bandas Independentes Locais - BIL (no mundo da música independente e da Música para Baixar - MPB) enfim...

Mas também nas sementes, na agricultura orgânica e no mundo jurídico (sim, há hacks jurídicos, como os do advogado espanhol Javier de la Cueva, em termos de propriedade intelectual), outros hacks começam a aparecer. É a aplicação da "regra de três" de Vicente Jurado (ourproject.org), programador e ativista ecológico espanhol. Passagem do mundo virtual para o concreto: se para softwares privados temos softwares livres, para sementes privadas temos sementes livres, para outros problemas, temos outros X, também: enfim este é o mundo das alternativas que começa a se formar.

E com relação à arte? À produção, distribuição e fruição artística? Se tem como copiar e distribuir gratuitamente, por que não fazê-lo? Só se o autor não o permitir, usando uma licença que proíba a troca (o copyright restritivo), para acumular sabe-se lá o que, em tempos de falência múltipla das indústrias culturais tradicionais. Gravadoras e empresas de cinema estão indo para o beleléu há anos, e só quem não viu isso é que segue alimentando o cadáver, confundindo o copyright (cedência dos direito aos donos dos meios de reprodução), com direito autoral (direito moral do autor).

Mas, e aí? É possível o artista viver de copyleft? O copyleft faz mal à cultura? O copyleft acaba com o direito moral do autor em relação a sua obra? Claro que não. Dos cinco pontos elencados no Manual de Copyleft (que o leitor pode baixar de graça na www.traficantes.net, da editora madrilenha Traficantes de Sueños), um seria suficiente para esclarecer de vez a situação. Trata-se do chamado "efeito de ser conhecido", que se amplia vigorosamente com o uso de licenças livres na comparação com o direito de cópia das majors, que restringe a circulação das obras intelectuais etc. Se se quer ser colaborativo (e ainda ganhar uma grana, muitas vezes a única para sobreviver), pode-se usar licenças para este fim, como creative commons. E continuar sendo o dono de sua obra intelectual sem precisar vendê-la por míseros trocados à moribunda indústria tradicional - trocados que só são pagos em dia aos mais famosos, pois o restante dos escritores e músicos menos conhecidos vive mais é de fontes indiretas, como palestras e shows.

Dentro de um último grupo, há os ainda mais radicais. São aqueles que produzem colaborativamente e distribuem seus produtos de maneira gratuita porque querem - simplesmente porque querem - ver algumas rachaduras se formando no falido sistema de interpretação do mundo atual. Recolocam a utopia, num outro patamar, pois sabem que assim como a ponta do discurso da esperança é a ingenuidade, a ponta do ceticismo é o cinismo. E o cinismo é imobilizador. De minha parte, também prefiro o primeiro ao segundo.

* Hackers são programadores e desenvolvedores de softwares livres se diferenciam dos crackers, os que usam seu conhecimento em informática para quebrar e não para construir colaborativamente.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Tchecov ou barbárie

A frase acima é o slogan aprovado por unanimidade na última reunião da tendência socialista tchecoviana integrada pelo escritor Jéferson Assumção, gaúcho, e Américo Córdula, teatrólogo paulista-paraibano. Dois dos menos influentes tchecovianos brasileiros participaram, para além de seus compromissos políticos de estruturação da dita corrente, do VII Encontro Brasileiro de Teatro de Rua, ontem, em Canoas.
Por ordem de chegada, o socialismo tchecoviano solicitou a palavra em determinado momento e passou a divagar sobre os temas principais do tchecovianismo brasileiro. Detalhou-se o que seria o decálogo estético da corrente (basicamente, ausência de palavreado prolongado de natureza socio-político-econômica; objetividade total; veracidade nas descrições dos personagens e dos objetos; brevidade extrema; fuga de lugares comuns e sinceridade). "A sinceridade é uma categoria estética", lembrou, embaixo do arvoredo onde o encontro acontecia, o vice-presidente da tendência, Jéferson Assumção. Um encontro anual da facção estética que propugna a volta imediata da literatura e do teatro aos preceitos do cânone tchecoviano ocorrerá anualmente no Teatro Nacional de Moscou, Rússia (ou do que sobrou dela): a Gaivota, para os iniciados no tema.

domingo, 25 de abril de 2010

Yuri F. Rodriguez, escritor caído

Yuri F. Rodriguez foi um tipo de escritor caído, espetáculo anacrônico do romantismo tardio e que desaparece, pra sempre, sem deixar sementes - só as gotas espalhadas pela terra cheia de areia e pedras, de um pampa deserto. Culminou, com seu esgotamento, um caminho. E por quê? Bom, é o que todos sabem: a cada dia que passa, nós sabemos que eles, os escritores, são mais ridículos, cada vez mais farsantes, à medida que o mundo anda, em sua correria, não digo dando as costas às suas já mirradas ejaculações - para evitar uma imagem excessivamente sexual – mas num nem-aí, que faz do dasein um pouco mais que um porra-louca das florestas encantadas da Alemanha.
“O ser-aí é só o nem-aí, na verdade, Astronauta. Não existe mais qualquer seriedade neste mundo” – Yuri reclamava - “E Heidegger, Sartre, Ortega e Unamuno são pura e simplesmente uns imbecis. A verdade é o riso do entrevistado antes de levantar da poltrona para cantar mais um hit no playback estimulando o auditório com palmas acima da cabeça. Um click na tevê e lá no outro canal tem uma família feliz no novo carro espaçoso. Mais um e aparece a apresentadora de tevê comentando o lançamento de um magnífico antirrugas. E se desliga a tevê fica ainda aquela sensação, a vertigem da velocidade que esparrama por cima de tudo o creme da impessoalidade, fragmentada, perturbadora, infértil, impossibilitando qualquer leitura mais demorada, mais atenta, qualquer mínima exigência, Astronauta”.
Por que Yuri Rodriguez foi, assim como eles, tão imbecil? Por que foi um merda? Por que não calou a boca, como todo mundo e, assim, continuaria vivo? Porque não dava. Ele fez o caminho contrário. Não correu pra lá, pra onde todos foram em gritinhos animados, mas pra cá, pra dentro, mesmo, cavando, mudo, com as próprias unhas, até chegar no fundo frio do poço escuro de si mesmo, onde caiu. E sem ter como voltar. Ali, só tinha a sua escrita, a que se achava com algum poder para contrapor-se ao universo de balbúrdias, a que se quis abolidora da cor local, a que tentava instalar a romântica petulância do gris sobre o inferno das cores da América do Sul. Em vão.
Tentou fazer o mesmo com a linguagem. Escrever para além dela, tendo que contar com ela, mas não sem a relutante consciência de que a linguagem seja, talvez, a única inimiga da literatura, e que só com a construção de uma espécie de clareira em sua natural opacidade é que se consegue enxergar o que são as coisas – ingênua petulância, a mais doce de todas a vivida por Yuri, assassinado por este mundo de porcos. Ele construiu lentes para melhor enxergar isso tudo e se opôs à farsa dos adornos desnecessários e infrutíferos, na busca das pequenas e únicas verdades. Quem quereria alguma coisa com isso?
Obviamente que há outros imbecis como Yuri. Também eles nasceram em lugares um tanto improváveis, em ambientes pouco propícios para o cultivo da literatura, como é o caso do Pampa. A úmida e sonora amazônia brasileira e colombiana, as grandes metrópoles invisíveis como São Paulo ou Belo Horizonte, a mais que vista Nova York, os frios e desertos altiplanos da Bolívia, os quentes e superpopulosos desertos mexicanos, o alegre joga-as-mãozinhas-pra-cima-bate-na-palma-da-mão do litoral brasileiro, as infinitas ondas do mar encrespado e pétreo da cordilheira dos Andes, os arredores barrentos e escuros da Europa do Leste, a inatingível estepe sul-africana, habitada por leões, por guepardos e obviamente por escritores. E até mesmo a Austrália, tão imprópria para a literatura por suas promessas sempre renovadas de novas aventuras.
E tantos já tinham morrido antes dele, tantos já hoje são apenas fotos de escritores brasileiros, chineses, argentinos, árabes, japoneses, penduradas em livrarias e cafés em Buenos Aires e São Francisco, em Pequim ou Rio de Janeiro, santos de uma religião já quase extinta, como bem queria o genial Thomas Bernardt, também morto.
Gente como Yuri, cujas idéias serão fósseis desencavados por cientistas e uma pequena porção de leitores amantes de um passado recente e, talvez por isso mesmo, até mais passado do que o mais distante, da ingrata humanidade. Deles, mais nada sobra, a não ser pequenas e privadas lembranças de cada vez menos leitores sem força alguma para se impor a um mundo que soterra a todos com a frieza anestésica de sua realidade, aterradora para a delicadeza das palavras.
O que Yuri fez foi muito mais que a louca revolução pessoal contra esta violência. Ao catar, na multidão, com paciência de garimpeiro, aqueles exemplares, para um acerto de contas estético, a faxina espiritual necessária, a violência reparadora de que este planeta tanto necessitou, ele não fez mais do que a única coisa possível via literatura: a negação do mundo. Para isso, teve, evidentemente, um método. Não bateu ao acaso, tal qual um desesperado lutador de rua como pode parecer ao observador desavisado. Foram ações de cirurgião e que tiveram como fim não a violência, mas esta o meio para a educação impossível da multidão de almas errantes de seu inferno pessoal. Esse é que foi seu único erro, evidentemente: acreditar que seria possível.
Nos últimos anos, já quase não escrevia mais. A última notícia sobre um livro seu – uma nota sem qualquer repercussão na Zero Hora - já tinha mais de quatro anos. Mesmo com o pequeno sucesso alcançado tempos atrás, o que com certeza o enterrará e fará de seu apartamento mais um dos pontos turísticos literários da nossa capital, ao lado do caminho de tantos grandes escritores. Foi assim, pobre desse jeito, em Buenos Aires, com a Plazoleta Cortázar ou sua imagem, como um santo desenhado na estação de Banfield. Ou com a rua Jorge Luiz Borges e o centro cultural que leva seu nome.
Foi um abandono da ética. Foi uma desistência do real. Foi a negação da objetividade, que seguiram-se ao fracasso do caminho que ele escolheu. Certamente que já estava mais para cá do que pra lá, mas na noite que se foi, ele completou a queda e se estatelou na terra dura do fundo. Lá dentro, ria soluçante um fantasma. Não o do simples escritor, mas o do escritor megalomaníaco, o idiota que quis colocar os pingos nos is, para restituir, com sua arte, uma racionalidade perdida, talvez pra sempre.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

50 anos do Exu Monumental

Há 50 anos, completados dia 21 de abril, inaugurava-se Brasília, cidade-monumento pousada - a altíssimo custo - no Planalto Central do País. Um ponto eqüidistante, pelo menos no imaginário brasileiro, de confluência de culturas, desde as desenvolvidas nas grandes cidades da costa superurbanizada, até as sertanejas, sulistas, amazônicas, pantaneiras... A menos brasileira das cidades do Brasil – alheia à e alienada da realidade que a cerca - a mais brasileira de todas, com tudo, de bem e de mal, de um imenso país diverso e desigual.

Cidade-parque, cidade-obra de arte, cidade-bolha, cidade medieval de pontes elevadiças que a cada noite fecha seus portões já sem os moradores das cidades satélites que de dia são sua parte humana visível, a atender nas portarias dos edifícios modernistas, amplos, belos, cheios de vazios e de silêncios emudecedores. Mas ela não é boa. Ela não é má. Ela é só o resultado de um feitiço, um saravá racionalmente planejado e executado quase que nos mínimos detalhes.

Há pouco mais de 50 anos, um fotógrafo captou de cima de um teco-teco o cruzamento de dois cortes abrindo o vermelho da terra onde antes era vegetação do Cerrado. Preto & branco, a foto clássica captou uma cruz, leste-oeste-norte-sul, mas como ficou enviesada pela posição do avião, resultou em um imenso “x”. Vi esta foto várias vezes na Secretaria de Cultura do DF. É o risco dos tratores no local em que o místico Dom Bosco teria visto, séculos atrás, uma cidade suntuosa, a nova capital que JK resolveu concretizar a custo do suor e do sangue dos mais pobres: um milagre. Este eixo monumental o jornalista TT Catalão chamou certa vez, de maneira muito espirituosa, de “Exu Monumental”.

Um Exu, na grande encruzilhada nacional, encruzilhada das encruzilhadas que é Brasília, cruzamento do urbano e do rural; do nacional e o universal; das culturas populares e eruditas; dos saberes tradicionais e as novas tecnologias; das culturas negra, indígena e branca mesclando-se em um caldeirão de idéias e vivências dos brasileiros com o Brasil... Antropofágico. Acolhedor. Voraz.

Exu não é deus. Exu não é o diabo. É apenas um mensageiro entre os seres humanos e os orixás. Espécie de Mercúrio das religiões afro-brasileiras. Quando oferecemos algo aos céus (ou infernos, pouco importa, já que, Exu, nietszcheanamente, está além do bem ou de mal), colocamos as oferendas nas encruzilhadas, nos encontros das ruas.

Mal-comparando, é mais ou menos isso o que se passa com a capital do Brasil. Para esta encruzilhada, levamos o que temos de melhor – um povo fantástico, arquitetos e artistas miraculosos, uma variadíssima cultura, sonhadores, místicos, batalhadores – e o que temos de pior – os violentos e pesados frutos da política dinossáurica e do parasitismo brasileiros. Está tudo lá, na esquina.

Aos 50 anos, Brasília é hoje a capital de um país que se mostra cada vez mais gigante, repleto de uma cultura híbrida, diversa, reconhecida no mundo todo como um de seus principais ativos. Uma nação que tem sabido amalgamar diferenças e fazer novidades brasileiras, com criatividade e sensibilidade. Apesar de tudo.

Uma pena que se trate muitas vezes de um Brasil praticamente desconhecido por nós, gaúchos, mergulhados, não individualmente, mas em escala social, ainda no paradigma da identidade (à força dos meios de comunicação e entretenimento, e do atrasismo conservador que tão bem manipulam e ganham dinheiro a explorar certo sentimento de purismo cultural, tão falso quanto perigoso). Daqui, não-raro as lentes distorcem com o preconceito e a desinformação a imagem de um Brasil fantástico.

E, assim, corremos o risco de perder a perspectiva do pertencimento, a perspectiva do Sul como contribuição generosa, em vez de diferença egoísta, o que, afinal, não tem nada a ver conosco, apesar da versão estereotipada vendida daqui mesmo para o resto do Brasil.

Diversidade não anula a identidade. Mostra-a como contribuição, como parte de um todo diverso no qual estamos com nossas especificidades: o estado, o país, o mundo, o universo (unimúltiplo). Tal sentimento talvez seja mais fácil de ser compreendido na capital do Brasil, lugar cuja identidade é a diversidade, não-lugar e lugar de todos. É a capital de um país de culturas de fronteira, antropofágicas, também ele uma encruzilhada, um x a ser decifrado, a todo o tempo nos exigindo a paciência do olhar mais atento que o das explicações binárias - simplistas mas nunca inocentes.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Comunes.org

Um em mundo de constante tentativa de supressão das ações coletivas em nome de uma idéia falsa de liberdade - algemada a valores econômicos - a iniciativa Comunes.org, espanhola, é oxigênio. Gente bacana que trata de fazer seu conhecimento circular com liberdade. Não a abstrata liberdade, à qual só acedem os que tem dinheiro (a maioria, aqueles que já nasceram com). Enfim, os comunes inventaram uma forma muito bacana de ajudar projetos colaborativos a se desenvolver. Aplicam conceitos do mundo dos softwares livres ao mundo real. No Lavapiés, colorido bairro de imigrantes de Madri, Vicente Jurado, hacktivista basco-andaluz-madrileño, faz, junto com amigos de diversas partes do mundo, uma quieta revolução. Confira: http://comunes.org/pt.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Mutantes no FSM em Canoas 6

Primeira parte do show dos Mutantes em Canoas, dia 26 de janeiro, no Fórum Social Mundial.

Mutantes no FSM em Canoas 5

Mutantes no Parque Esportivo Eduardo Gomes, em Canoas, 26 de janeiro de 2010. Fórum Social Mundial 10 anos.

Mutantes no FSM em Canoas 4

Mutantes no FSM em Canoas 3

Mutantes e seus cometas em Canoas no segundo dia de Fórum Social Mundial. Foram mais de 230 atividades e 80 shows entre o palco A e B.

Mutantes no FSM em Canoas 2

Com a Balada do Louco, ao vivo no FSM 2010, Canoas-RS, 35 mil participantes do FSM cantaram um velho hino à reposição da utopia. Renovados.


Mutantes no FSM em Canoas

Show dos Mutantes em Canoas, durante o Fórum Social Mundial dia 26 de janeiro. Mais de 35 mil pessoas no Parque Esportivo Eduardo Gomes, numa noite encantada.


domingo, 17 de janeiro de 2010

Cidades Criativas de Periferia no FSM 2010

O debate cultural e, principalmente, o das Cidades Criativas de Periferia – que estamos lançando nesta edição descentralizada do FSM – terá atividades marcantes no Fórum Social Mundial 10 Anos – Grande Porto Alegre. Da Capital gaúcha a Sapiranga, passando por Novo Hamburgo e São Leopoldo, eventos de relevância internacional ocorrerão na linha do Trensurb. Essa mesma linha que diariamente leva 170 mil trabalhadores para as fábricas da região receberá nos cinco dias do Fórum a Casa Cuba e a Reunião Pública Mundial de Cultura em São Leopoldo; uma extensa grade no Acampamento Intercontinental da Juventude em Novo Hamburgo; discussões sobre cultura no Fórum das Autoridades Locais de Periferia em Canoas, e muitas outras iniciativas em maiores ou menores dimensões. Em Canoas, teremos, entre as mais de 230 atividades auto-organizadas da cidade, dezenas relacionadas com o tema da cultura, principalmente no recorte “cultura de rua”, “cultura de periferia”, “cultura livre” ou “independente”.
Em meu entendimento, trata-se, de um resultado concreto do "paradigma da política cultural", em curso no Brasil desde 2003. A partir desse paradigma, a cultura não é mais vista apenas em um eixo, vertical (estético, das belas artes) ou horizontal (ético, democratizador). Ultrapassou-se esta perspectiva binária, cartesiana e simplificadora. Complexificou-se a idéia de cultura, vendo-a com seus desdobramentos em três eixos: cultura como direito de cidadania, cultura como economia e cultura como valor simbólico, criativo. A partir dessa tridimensionalidade, os eixos horizontal e vertical se complementam em vez de se excluírem.

Um problema é que, a duras penas, este paradigma se espalha pelo Brasil e ainda está heterogeneamente distribuído no território nacional. Há mais tempo desenvolvido em algumas capitais, o referido paradigma não é uma realidade na totalidade dos estados brasileiros, muito menos nas cidades periféricas, sejam elas as das regiões metropolitanas ou do interior dos estados.

Apesar disso, em distintos pontos do mapa do Brasil, a cultura começa a ser vista como "coisa séria", para muito além do entretenimento, do ornamento fútil ou do elemento ostentatório. E com a diretriz da descentralização das políticas culturais em voga, agora também as periferias do Brasil inteiro começam a saber que cultura é, na verdade, um poderoso instrumento de qualificação do ambiente social. Cultura gera instrumentos fundamentais para a transformação, pois amplia o leque de repertórios, gera coesão/oportunidades/sentido/portas de saída/agregação e espírito crítico. E isso, para as populações e territórios de periferia, historicamente à margem no que se refere à plena garantia de seus direitos sociais, ambientais e culturais, ganha proporções ainda mais sérias e urgentes. Acesso a bens e serviços culturais é tão necessário quanto o acesso à saúde e educação. Apenas as populações não demandam tanto por cultura nas periferias como nas capitais, porque nesses territórios foi menos desenvolvida (via política cultural) a consciência dos direitos culturais. Expresso em nossa Constituição, a garantia de tais direitos é dever do Estado desde 1988.

Mas aos poucos essa realidade vai se modificando nas periferias, por meio da ação de secretarias de cultura comprometidas com as transformações. Na Região Metropolitana de Porto Alegre, já podemos contabilizar ótimos exemplos, tanto locais como na excelente articulação regional que possibilitou a criação, em 2009, da Rede de Dirigentes Culturais da RM de Porto Alegre. Com certeza um dos grandes resultados dessa ação em rede é a força que a cultura obteve na programação do FSM em nossas cidades. No caso de Canoas, em cinco meses de intenso trabalho entre governo e sociedade, emergiram na programação do FSM a visão dos jovens das periferias e suas práticas culturais. Foi assim que ganhou, de vez, a programação do FSM em Canoas o tema da cultura de periferia.

Ampliação do capital cultural

O processo de construção da grade de atividades do FSM nos ensinou muitas coisas. Quero destacar alguns elementos que brotaram das dezenas de reuniões desde o intenso inverno gaúcho de 2009 até o início de janeiro de 2010.

- A ampliação das possibilidades de fruição e expressão simbólicas das camadas mais à margem na sociedadade é vista pelos artistas de Canoas como condição para a transformação das realidades de violência e de falta de perspectivas nas quais estão mergulhados - mas, diferentemente de outros nas mesma condição, não de maneira passiva. Agem contra essas realidades. E com criatividade.

- Por meio da ampliação de seu capital simbólico e cultural, vão transformando suas vidas e as vidas de suas comunidades. Na área da leitura, dez bibliotecas comunitárias nos bairros são exemplo vivo dessas ações exemplares e que se complementam com dezenas de grupos de capoeira e de hip-hop e as mais de 100 bandas de rock da cidade. A articulação entre elas é vista por eles como uma necessidade urgente e de grande valia para o desenvolvimento cultural do município.

- A consciência de sua condição vem a esses grupos por meio da ampliação de seu repertórios e visão de mundo. E é isso o que eles querem também para seus pares. É nesse ponto que o eixo estético, vertical, das sensibilidades e criatividades individuais, toca o ético: o eixo horizontal, coletivo, dos costumes a serem modificados. Assim é que bandas independentes se organizam, tocam, gravam seus próprios cds (já estão na quarta coletânea), disponibilizam na rede, realizam suas festas de lançamento e discutem cultura livre. Formam uma rede de ação solidária, participativa, que tem servido de modelo a coletivos de outras regiões do Estado.

- O recente desenvolvimento da política cultural na cidade (nossa secretaria tema penas um ano) é visto como elemento fundamental para gerar a consciência de que a cultura é direito de cidadania e que não pode ficar restrita (como direito) aos bairros ricos da cidade nem aos bairros ricos das capitais, onde se acumulam os equipamentos culturais e os recursos financeiros.

- A universalização do acesso é pauta fundamental para a geração de uma sociedade mais livre, criativa e socialmente justa.

- Queremos desenvolver, de maneira participativa, o modelo das cidades criativas também nas periferias das grandes cidades (e do interior dos estados) e sair da condição de populações relegadas ao papel de mão de obra barata para o trabalho pesado da geração de bens.

A emergência das periferias
Formadas na virada do Brasil agrário para urbano/industrial dos 1960 para os 70, com o desenvolvimentismo capitalista brasileiro de então, as cidades das RM têm a marca do trabalho duro na indústria (frequentemente metalúrgica) e os escassos tempos para a fruição e expressão culturais. Além do trabalho duro, essas populações precisam ser atendidas em seus direitos cotidianos à dimensão simbólica, estética, afetiva – e não apenas ao seu arremedo via indústria do entretenimento massivo e comercial, onde se faz o achatamento e a mercantilização das sensibilidades e das criatividades.

Não somos Toronto, nem Berlim, nem Barcelona, as chamadas “cidades criativas”. Mas Canoas, São Leopoldo, Guarulhos, Getafe, Nanterre, Banfield. E tantas outras que se encontrarão em Canoas de 26 a 28 no Seminário Metrópoles Solidárias de Periferia, da rede Falp. Também criativos, quando se se dá conta da riqueza das produções dessas localidades (e que poderão ser conferidas no Fórum Social Mundial 2010 Grande Porto Alegre.

A emergência das periferias se dará em um Fórum que tem a cara das periferias, pois é o primeiro que acontece para além de uma capital de estado ou de país, como são os casos das historicamente combativas Porto Alegre, Mumbai, Caracas, Nairóbi e Belém. Agora, também Canoas, Gravataí, Sapucaia do Sul, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Sapiranga, Santa Maria e muitas outras entram no mapa altermundista, no mapa do contrapoder global, como cidades que produzem alternativas para a construção de um mundo melhor. Pois nessas cidades também existem – e muitas – ações cidadãs em rede, economia solidária, democracia participativa, geração de bens públicos. E cultura livre.

Aqui, em Canoas, teremos durante o FSM, uma mostra de como as distintas linguagens artísticas podem se desenvolver tanto no eixo vertical, estético, quanto no horizontal e empoderador, com os Pontos de Cultura, o Rock Social Mundial, o Hip-hop Sem Fronteiras, a Rede Sul-Brasileira de Teatro de Rua, com 15 espetáculos em toda a cidade, o Espaço Interplanetário de Cultura Livre, o Seminário Litero-ativismo: Leitura para um outro mundo possível, a Mesa Culturas Indígenas, a Mesa Cidades Criativas e Solidárias de Periferia e o lançamento do edital nacional de Hip-Hop, pelo Ministério da Cultura, além de dezenas de outras discussões e ações culturais que ocorrerão de 25 a 29 no Parque Esportivo Eduardo Gomes e no Centro Universitário La Salle. Sem falar nos shows maiores que, desta vez, ocorrerão em Canoas, no PEG, com Tom Zé, Mutantes, Chico César, GOG, Nação Zumbi, Racionais Mcs, Daniel Drexler e muitos outros. Esperamos a todos em nossa cidade, cidade de periferia integrante do Território Social Mundial.