sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Sobre se captamos ou produzimos o pensamento

Afinal os seres humanos produzem ou captam seus pensamentos? Esta, sim, era uma questão importante para mim. Pois bastava arrastar meus chinelos, camisa do Inter pendurada ao ombro, pelo Centro de Porto Alegre para notar o quanto, na verdade, as pessoas, a rigor, apenas captavam o que deveriam ser, pensar, como existir, o que comer, como andar, quando sair, que time torcer. Eram kits de comportamento, caixinhas estéticas (e éticas, por que não?) em que cada um vivia. Era isso o que eu pensava, passando a mão na pança branca reluzente sob o sol, Borges abaixo.
Por exemplo: ao redor do mercado público de Porto Alegre, ali mesmo, entrando pela Voluntários da Pátria onde se esparramavam ruidosamente, naquela época, meus colegas camelôs e a maioria das lojas populares da cidade, se vivia enfiado na circunstância estética dos frutos reluzentes por fora, podres por dentro, da indústria cultural, sem que fosse possível qualquer recusa. Povoado por cerca de 400 mil pessoas diariamente, o Centro de Porto Alegre compunha as paredes repletas de meu inferno cotidiano de trabalhador informal. Eu não conhecia, mas certamente era assim mesmo em qualquer cidade brasileira, quem sabe mundial, enfiadas todas na mesma porcaria de kit.
Ali, se via, em meu tempo, aquela gente ouvindo a música da moda, comprando a calça da moda, rebolando o tcham do pára-folclore pueril, tocando o CD do industrializado samba e da música sertaneja, travestidos de música popular, além das meladas músicas românticas temas da novela do momento. Atendendo a passante robusta, com um pronto,freguesa!, eu refletia (ou captava), que essa circunstância estética era, para mim, o epicentro regional da erosão cultural provocada pelos grandes meios de comunicação. E me sentia mais ou menos esperto. Ali predominavam - eu via - a opinião e um falso subjetivismo, já que se tratava (embrulhando o rádio-relógio para presente) de um subjetivismo sem sujeito, ali se respondiam às incitações das empresas de marketing e o consumo desenfreado de produtos propagandeados pela televisão e pelos jornais de informação de baixa qualidade em grandes quantidades – eu dizia para mim mesmo - ou ouvia de alguém, já pensando, em plena tarde, no balcão do boteco do Mercado no início da noite, empinando uma Polar e a olhar a multidão, lá fora.
Então, é assim a vida, seus filhos da p! - eu raciocinava. Milhões de brasileiros e bilhões de seres humanos em todo o planeta viverão sua vida confinados neste kit de comportamento até a morte, morrerão sem ter contato com nada, nem mesmo um dedo da imensa diversidade cultural do mundo e alimentarão os preconceitos que formam o kit, para os próximos que ocuparão seus lugares depois de suas mortes anônimas! Re, re. Eu via, alcançando a tiara da Viúva Porcina, para a garotinha de vestido vermelho, que, nesta circunstência estética, há uma ética e uma política heterônomas, implícitas e, não raro, era a manipulação dos preconceitos dessa massa o motor que fazia com que a própria massa anestesiada, sem sensação alguma, a não ser uma relação sentimentalóide com o mundo, fizesse as escolhas que as mantinham exatamente onde estavam.
Invariavelmente, depois do expediente, abria os trabalhos com uma gelada no bar do Cláudio, de frente para o fluxo da estação, onde as jovens tinham que passar, saídas de trás dos balcões das lojas para voltar para casa. Sempre pedia um pastel de galinha. Sempre estava frio. Duro. Sempre comia-o.
É óbvio que a razão – a minha razão - não tinha como ser exercida num lugar daqueles. Ali grassava o sofisma. Ali ganhavam corpo a falácia, a ilusão, a mentira, a sensação grosseira, a roupa vulgar, a fala irracional, a violência simbólica e gratuita, a opinião rasa.
Santa ceva! Mais uma, pedia sem falar nada, só levantando a garrafa pelo gargalo, a matutar sobre se Perdo Ernesto, o garçom, um índio de São Sepé, recebia, afinal, recebia? - ou produzia - seus pensamentos. Nunca soube... E o Lauro, o hippie com a tatuagem de um cogumelo no braço, sempre sentado na mesa ao lado àquela hora? Olhasse para ele... Suponhamos que ele pudesse sair de sua caixinha, de seu kit, e correr para outra, uma outra da mesma contracultura norte-americana? O Lauro punk, o Lauro grunge, cluber, dark, o que fosse? Em cada uma dessas, teria um conjunto de músicas, roupas, cores, cabelos, drogas, uma filosofia, uma estética, uma ética? Estaria, ele, o Lauro, realmente, pensando, só porque saiu de sua primeira caverna, de seu primeiro kit?
E saindo daí, correndo, logo em seguida para a caixinha do militante político, também ele com seus símbolos e bandeiras, suas poesias e tratados, seria ele quem pensaria suas coisas, quem produziria sua consciência, ou seguiria assimilando ao invés de produzir o que pensa? Agora, o mesmo não ocorria com o Toninho, o chaveiro, a bebericar seu vermuth de cada dia no balcão? E o administrador de empresas ou o industrial bem-sucedido, que nunca passsavam por ali? O mesmo não ocorre com o velho motorista da Carris, escorado no Mercado, com o vendedor de vale-transporte, com o vendedor de bergamotas? Ninguém pensa... Todos estão mergulhados no barro de que é o mundo, sem produzir absolutamente nada de novo. A produção de sentido para suas ações é uma farsa - eu dizia servindo mais uma parte da bichinha no copo. O homem não é um animal racional. O homem não pensa, ele recebe o que pensa - cheguei a falar para o copo de cerveja, imediatamente ouvindo uma música sertaneja que dizia algo parecido e que Pedro Ernesto tinha passado a cantarolar. O hippie protestou, xingou-o baixinho e pediu a conta.

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