sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O último ativista

Não tinha nada a ver com aquilo! Nada! Mesmo quando esteve dentro deles, no pleno de sua atividade ética e política de sindicalista, no discurso em público pelos direitos dos estudantes, na enérgica cobrança por salários dignos aos trabalhadores do setor gráfico, ele esteve como que envolto em um parêntesis, colocado em suspensão.
Mesmo o orador destacado de inumeráveis protestos contra a privatização da Petrobras, o puxador de guturais palavras de ordem contra a propriedade intelectual. O organizador de memoráveis baterias de migração de computadores para plataformas livres, o insurgente visceral contra os transgênicos e radical defensor da agricultura orgânica, da bioconstrução, da criativa e sempre bem-humorada denúncia da pesca e caça predatórias, o que se insurgia, dedo em riste, contra o uso de animais para experiências científicas, um dos que mais fundo atacaram com seu verbo pontiagudo o problema do fascismo social em textos nos informativos da categoria, dos que promoveram sabiamente a visão da segurança não como a simples eliminação do inimigo, mas que demonstraram batendo com a mão na mesa de seminários a necessidade de se enxergar a “violência estrutural” da sociedade, ele que com conveniente serenidade defendeu a cópia livre de medicamentos, de textos e de fórmulas, que com uma veia saltando do pescoço opôs-se à mercantilização do conhecimento, que enxergou, junto com os maiores conhecedores desses temas no mundo, a necessidade de repensar a democracia, através de instrumentos que tornassem possível a apropriação pública do Estado, a democracia direta, que defendeu em palestras, à medida que foi se enfiando no sindicato, galgando postos na escada, a luta dos agricultores das margens assoriadas do Ganges, quem foi a público defender o direito dos casamentos entre homossexuais, quem apoiou da forma como apoiou a Marcha Mundial das Mulheres, a luta dos povos indígenas, a pacificação do Oriente Médio, os direitos dos agricultores sem-terra do Brasil e de toda a América Latina, a liberdade do Tibete, a causa de Chiapas, a diversidade cultural, a liberdade de ir e vir dos pobres africanos, dos sem papéis, a derrubada do muro da vergonha entre o México e os Estados Unidos, a paralisação da construção do Muro entre Israel e a Palestina, o consumo crítico, as redes de trocas, os produtos da economia popular e solidária, a proliferação das rádios comunitárias e dos meios de comunicação alternativos... E tudo isso sem sair de dentro dele mesmo, daquele invólucro de carne humana pesada e perecível.

Yuri F. Rodriguez, escritor caído

Nota sobre a morte de Yuri F. Rodriguez, ocorrida ontem. O que dizer? Foi um tipo de escritor caído, espetáculo anacrônico do romantismo tardio e que desaparece, pra sempre, sem deixar sementes - só as gotas espalhadas pela terra cheia de areia e pedras, de um pampa deserto. Culminou, com seu esgotamento, um caminho. E por quê? Bom, é o que todos sabem: a cada dia que passa, nós sabemos que eles, os verdadeiros escritores, são mais ridículos, cada vez mais farsantes, à medida que o mundo anda, em sua correria, não digo dando as costas às suas já mirradas ejaculações - para evitar uma imagem excessivamente sexual – mas num nem-aí, que faz do dasein um pouco mais que um louco das florestas encantadas da Alemanha.
“O ser-aí é só o nem-aí, na verdade, J. Não existe mais qualquer seriedade neste mundo” – Yuri reclamava - “E Heidegger, Sartre, Ortega e Unamuno são pura e simplesmente uns baitas de uns imbecis. A verdade é o riso do entrevistado antes de levantar da poltrona para cantar mais um hit no playback estimulando o auditório com palmas acima da cabeça. Um click na tevê e lá no outro canal tem uma família feliz no novo carro espaçoso. Mais um e aparece a apresentadora de tevê comentando o lançamento de um magnífico antirrugas. E se desliga a tevê fica ainda aquela sensação, a vertigem da velocidade que esparrama por cima de tudo o creme da impessoalidade, fragmentada, perturbadora, infértil, impossibilitando qualquer leitura mais demorada, mais atenta, qualquer mínima exigência, J.”.
Por que Yuri Rodriguez foi, assim como eles? Por que não calou a boca, como todo mundo e, assim, continuaria vivo? Porque não dava. Ele fez o caminho contrário. Não correu pra lá, pra onde todos foram em gritinhos animados, mas pra cá, pra dentro, mesmo, cavando, mudo, com as próprias unhas, até chegar no fundo frio do poço escuro de si mesmo, onde caiu. E sem ter como voltar. Ali, só tinha a sua escrita, a que se achava com algum poder para contrapor-se ao universo de balbúrdias, a que se quis abolidora da cor local, a que tentava instalar a romântica petulância do gris sobre o inferno das cores da América do Sul. Em vão.
Tentou fazer o mesmo com a linguagem. Escrever para além dela, tendo que contar com ela, mas não sem a relutante consciência de que a linguagem seja, talvez, a única inimiga da literatura, e que só com a construção de uma espécie de clareira em sua natural opacidade é que se consegue enxergar o que são as coisas – ingênua petulância, a mais doce de todas a vivida por Yuri, assassinado por este mundo de porcos. Ele construiu lentes para melhor enxergar isso tudo e se opôs à farsa dos adornos desnecessários e infrutíferos, na busca das pequenas e únicas verdades. Quem quereria alguma coisa com isso?
Obviamente que há outros imbecis como Yuri. Também eles nasceram em lugares um tanto improváveis, em ambientes pouco propícios para o cultivo da literatura, como é o caso do Pampa. A úmida e sonora amazônia brasileira e colombiana, as grandes metrópoles invisíveis como São Paulo ou Belo Horizonte, a mais que vista Nova York, os frios e desertos altiplanos da Bolívia, os quentes e superpopulosos desertos mexicanos, o alegre joga-as-mãozinhas-pra-cima-bate-na-palma-da-mão do litoral brasileiro, as infinitas ondas do mar encrespado e pétreo da cordilheira dos Andes, os arredores barrentos e escuros da Europa do Leste, a inatingível estepe sul-africana, habitada por leões, por guepardos e obviamente por escritores. E até mesmo a Austrália, tão imprópria para a literatura por suas promessas sempre renovadas de novas aventuras. Também lá eles existem.
E tantos já tinham morrido antes dele, tantos já hoje são apenas fotos de escritores brasileiros, chineses, argentinos, árabes, japoneses, penduradas em livrarias e cafés em Buenos Aires e São Francisco, em Pequim ou Rio de Janeiro, santos de uma religião já quase extinta, como bem queria o genial Thomas Bernhardt, também morto.
Gente como Yuri, cujas idéias serão fósseis desencavados por especialistas em Letras, mas também por uma pequena porção de verdadeiros leitores amantes de um passado recente e, talvez por isso mesmo, até mais passado do que o mais distante, da ingrata humanidade. Deles, mais nada sobra, a não ser pequenas e privadas lembranças de cada vez menos leitores sem força alguma para se impor a um mundo que soterra a todos com a frieza anestésica de sua realidade, aterradora para a delicadeza das palavras.
O que Yuri fez foi muito mais que a louca revolução pessoal contra esta violência. Ao catar, na multidão, com paciência de garimpeiro, aqueles exemplares, para um acerto de contas estético, a faxina espiritual necessária, a violência reparadora de que este planeta tanto necessitou, ele não fez mais do que a única coisa possível via literatura: a negação do mundo. Para isso, teve, evidentemente, um método. Não bateu ao acaso, tal qual um desesperado lutador de rua como pode parecer ao observador desavisado. Foram ações de cirurgião e que tiveram como fim não a violência, mas esta o meio para a educação impossível da multidão de almas errantes de seu inferno pessoal. Esse é que foi seu único erro, evidentemente: acreditar que seria possível.
Nos últimos anos, já quase não escrevia mais. A última notícia sobre um livro seu – uma nota sem qualquer repercussão na Zero Hora - já tinha mais de quatro anos. Mesmo com o pequeno sucesso alcançado tempos atrás, o que com certeza o enterrará e fará de seu apartamento mais um dos pontos turísticos literários da nossa capital, ao lado do caminho de tantos grandes escritores. Foi assim, pobre desse jeito, em Buenos Aires, com a Plazoleta Cortázar ou sua imagem, como um santo desenhado na estação de Banfield. Ou com a rua Jorge Luis Borges e o centro cultural que leva seu nome.
Foi um abandono da ética. Foi uma desistência do real. Foi a negação da objetividade, que seguiram-se ao fracasso do caminho que ele escolheu. Certamente que já estava mais para cá do que pra lá, mas ontem, na noite em que se foi, ele completou a queda e se estatelou na terra dura do fundo. Lá dentro, ria soluçante um fantasma. Não o do simples escritor, mas o do escritor megalomaníaco, o idiota que quis colocar os pingos nos is, para restituir, com sua arte, uma racionalidade perdida, talvez pra sempre.

Sobre se captamos ou produzimos o pensamento

Afinal os seres humanos produzem ou captam seus pensamentos? Esta, sim, era uma questão importante para mim. Pois bastava arrastar meus chinelos, camisa do Inter pendurada ao ombro, pelo Centro de Porto Alegre para notar o quanto, na verdade, as pessoas, a rigor, apenas captavam o que deveriam ser, pensar, como existir, o que comer, como andar, quando sair, que time torcer. Eram kits de comportamento, caixinhas estéticas (e éticas, por que não?) em que cada um vivia. Era isso o que eu pensava, passando a mão na pança branca reluzente sob o sol, Borges abaixo.
Por exemplo: ao redor do mercado público de Porto Alegre, ali mesmo, entrando pela Voluntários da Pátria onde se esparramavam ruidosamente, naquela época, meus colegas camelôs e a maioria das lojas populares da cidade, se vivia enfiado na circunstância estética dos frutos reluzentes por fora, podres por dentro, da indústria cultural, sem que fosse possível qualquer recusa. Povoado por cerca de 400 mil pessoas diariamente, o Centro de Porto Alegre compunha as paredes repletas de meu inferno cotidiano de trabalhador informal. Eu não conhecia, mas certamente era assim mesmo em qualquer cidade brasileira, quem sabe mundial, enfiadas todas na mesma porcaria de kit.
Ali, se via, em meu tempo, aquela gente ouvindo a música da moda, comprando a calça da moda, rebolando o tcham do pára-folclore pueril, tocando o CD do industrializado samba e da música sertaneja, travestidos de música popular, além das meladas músicas românticas temas da novela do momento. Atendendo a passante robusta, com um pronto,freguesa!, eu refletia (ou captava), que essa circunstância estética era, para mim, o epicentro regional da erosão cultural provocada pelos grandes meios de comunicação. E me sentia mais ou menos esperto. Ali predominavam - eu via - a opinião e um falso subjetivismo, já que se tratava (embrulhando o rádio-relógio para presente) de um subjetivismo sem sujeito, ali se respondiam às incitações das empresas de marketing e o consumo desenfreado de produtos propagandeados pela televisão e pelos jornais de informação de baixa qualidade em grandes quantidades – eu dizia para mim mesmo - ou ouvia de alguém, já pensando, em plena tarde, no balcão do boteco do Mercado no início da noite, empinando uma Polar e a olhar a multidão, lá fora.
Então, é assim a vida, seus filhos da p! - eu raciocinava. Milhões de brasileiros e bilhões de seres humanos em todo o planeta viverão sua vida confinados neste kit de comportamento até a morte, morrerão sem ter contato com nada, nem mesmo um dedo da imensa diversidade cultural do mundo e alimentarão os preconceitos que formam o kit, para os próximos que ocuparão seus lugares depois de suas mortes anônimas! Re, re. Eu via, alcançando a tiara da Viúva Porcina, para a garotinha de vestido vermelho, que, nesta circunstência estética, há uma ética e uma política heterônomas, implícitas e, não raro, era a manipulação dos preconceitos dessa massa o motor que fazia com que a própria massa anestesiada, sem sensação alguma, a não ser uma relação sentimentalóide com o mundo, fizesse as escolhas que as mantinham exatamente onde estavam.
Invariavelmente, depois do expediente, abria os trabalhos com uma gelada no bar do Cláudio, de frente para o fluxo da estação, onde as jovens tinham que passar, saídas de trás dos balcões das lojas para voltar para casa. Sempre pedia um pastel de galinha. Sempre estava frio. Duro. Sempre comia-o.
É óbvio que a razão – a minha razão - não tinha como ser exercida num lugar daqueles. Ali grassava o sofisma. Ali ganhavam corpo a falácia, a ilusão, a mentira, a sensação grosseira, a roupa vulgar, a fala irracional, a violência simbólica e gratuita, a opinião rasa.
Santa ceva! Mais uma, pedia sem falar nada, só levantando a garrafa pelo gargalo, a matutar sobre se Perdo Ernesto, o garçom, um índio de São Sepé, recebia, afinal, recebia? - ou produzia - seus pensamentos. Nunca soube... E o Lauro, o hippie com a tatuagem de um cogumelo no braço, sempre sentado na mesa ao lado àquela hora? Olhasse para ele... Suponhamos que ele pudesse sair de sua caixinha, de seu kit, e correr para outra, uma outra da mesma contracultura norte-americana? O Lauro punk, o Lauro grunge, cluber, dark, o que fosse? Em cada uma dessas, teria um conjunto de músicas, roupas, cores, cabelos, drogas, uma filosofia, uma estética, uma ética? Estaria, ele, o Lauro, realmente, pensando, só porque saiu de sua primeira caverna, de seu primeiro kit?
E saindo daí, correndo, logo em seguida para a caixinha do militante político, também ele com seus símbolos e bandeiras, suas poesias e tratados, seria ele quem pensaria suas coisas, quem produziria sua consciência, ou seguiria assimilando ao invés de produzir o que pensa? Agora, o mesmo não ocorria com o Toninho, o chaveiro, a bebericar seu vermuth de cada dia no balcão? E o administrador de empresas ou o industrial bem-sucedido, que nunca passsavam por ali? O mesmo não ocorre com o velho motorista da Carris, escorado no Mercado, com o vendedor de vale-transporte, com o vendedor de bergamotas? Ninguém pensa... Todos estão mergulhados no barro de que é o mundo, sem produzir absolutamente nada de novo. A produção de sentido para suas ações é uma farsa - eu dizia servindo mais uma parte da bichinha no copo. O homem não é um animal racional. O homem não pensa, ele recebe o que pensa - cheguei a falar para o copo de cerveja, imediatamente ouvindo uma música sertaneja que dizia algo parecido e que Pedro Ernesto tinha passado a cantarolar. O hippie protestou, xingou-o baixinho e pediu a conta.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Stallman em Canoas



O programador norte-americano Richard Stallman, gentilmente, esteve em Canoas no mesmo dia 26 de junho passado em que encontrou-se com o presidente Lula. Na ocasião, Stallman falou para uma platéia de jovens estudantes e interessados no tema dos softwares livres. Ficou mais de uma hora no Salão de Atos do Centro Universitário La Salle: oportunidade ímpar para os canoenses, acostumados a acompanhar, apenas pela tevê, visitas de palestrantes internacionais a Porto Alegre, nossa capital tão próxima e que nos torna tão distantes, muitas vezes. Agradecimento especial ao nosso amigo Marcelo Branco, da Associação de Software Livre. Por seu intermédio, fizemos uma parceria para que o evento ocorresse dentro da Feira do Livro de Canoas. No final, Stallman posou para algumas fotos, como esta.