sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Vespa

Faltava pouco para chegarem à fronteira, quando o ônibus parou com um pneu estourado. O ar estava quieto e vazio, como o gramado em volta. Aos poucos, os passageiros desceram, anestesiados pela viagem, mexendo as pernas para que o sangue voltasse a se derramar pelos vasos mais abaixo dos membros e certas regiões pressionadas pela posição nos assentos. Lean respondeu ao ultrapassar a porta e pisar a grama alta:
- Mas, de certa forma, é assim até hoje. Tudo o que fazemos é costurar com linha e agulha. Dar uns pontos, fechar as coisas lá dentro... Olha. Não me recordo mais o nome do livro, mas é uma patética biografia, a de um cientista inglês que pensava “livrar” as pessoas de crenças, levando a clareza da ciência aos mais distantes vilarejos europeus. É uma das coisas mais tristes que já li em minha vida. Porque me dá a sensação de estar contando minha própria história. Como uma espécie de pastor racionalista e sua inabalável fé, esse cara trocava as crenças das populações pelas “descobertas” científicas da época, as quais, agora, entendemos eram tão estúpidas quanto as crenças. É claro que fazemos isso até hoje, só não o sabemos. Trocamos crenças absurdas por outras mais fáceis de serem aceitas, por seus resultados mais úteis que as anteriores.

Um imenso campo por todos os lados, um mar verde, um céu azul. O sol imitava a bandeira uruguaia, com o céu atravessado por faixas finas de gás branco. E silêncio. Até que Lean ouviu o barulho de uma vespa riscar o ar. Tentou dar um tapa, mas não encontrou nada.
- Un día, u mar cobriu toda essa extensión, desde o Rio Grande do Sul, o Uruguai inteiro, até o norte da Argentina. La Pampa, dissem, ainda tem sal - ela falou, escabelada, amassada pelas longas horas no ônibus. Na África do Sul e na Austrália, também. Tudo era um grande pampa submerso. E nós, microbios, se tanto...
- História Natural da Tolice - ele disse, lembrando-se de repente. - É um livro muito interessante, que investiga as origens de diversas crenças para demonstrar que, na verdade, ainda acreditamos em muita coisa boba, mesmo nós, cientistas.
- Sim. Há várias tolices dessas. Aprendi algumas na faculdade - ela falou.
- A crença de que os cabelos e unhas crescem após a morte é um exemplo. Bastaria que se observasse alguma vez para ver que isso não é verdade, mas as pessoas preferem acreditar.
- Ou que o cal extermina com os corpos?
- "Vamos pôr uma pá de cal sobre esse assunto”". Sim, o cal, que na verdade conserva. Tem uma outra coisa. Esses dias, estive pensando sobre a resposta para a boba pergunta: quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?
- Ovo!?
- Sim, uevo y la galina.
- Ah!, sim. O uevo, é claro, veio primero. É evidente que o uevo existe desde muito antes da galinia, desde muito antes da existência delas, e dos próprios dinos, que também punham uevos. Desde Darwin que se deveria saber que de um uevo nasceu uma galinia, em milhares de anos de evoluçao. Simples. Mas essa é uma outra história. Trata-se de crença. O problema é a crença da ciência.
A vespa continuava a voejar. De novo, tentou afastá-la.
- O que houve, Lean?
- Uma vespa. Lá.
- Você sabe se as vespas enxergam apenas negro y blanco, como as abellas? - ela falou, procurando, aparentemente sem encontrar, o ponto negro que parecia andar ao redor deles, que tanto o enchia de medo. Há alguns meses, Lean tinha passado a enxergar um ponto preto ao lado de fora com o olho esquerdo. Para onde virasse, lá estava ele. No começo, pequeno, mas depois o suficiente para ser confundido com uma mosca em cima da mesa, se estivesse distraído. Começou a suar, Carina não percebeu. Então, falou, para espantar o bicho:
- Não sei. Mas me entristece saber que não podemos enxergar em outras circunstâncias e de que as cores não existam, por si só, a não ser porque as vemos como as vemos, porque temos nossos olhos, esse mecanismo absurdamente complexo, e todas as condições possíveis ao redor. Uma delas não existindo e não poderíamos ver mais nada. É claro que você sabe por que o céu é azul.
- Por caussa da atmosfera...
- Sim, como um prisma, que amarela em uma da pontas, descendo para o vermelho, até o preto, à noite, não é? É uma ilusão que vemos, todos juntos.

Nada tinha graça, com aquela mulher. O mundo todo na ponta da língua e a conversa deles a de cegos ao contrário tateando para tentar encontrar algo que os dois não vissem com clareza. Idéias claras e distintas.
O Sol estava vigoroso, mas não quente, àquela hora da manhã. Carina e Lean empastados da noite sem dormir. Ela não sorriu desde que desceu. Permanecia em silêncio com as mãos nos bolsos de trás, pequenos, apertados. Lean queria abraçá-la, para retomar em algum momento o que havia acontecido de noite, mas parecia que tinham deixado se criar uma distância impossível de ser recuperada, algo que precisariam percorrer de novo quase do zero, como se recém tivessem saído de Montevidéu.
Muda, ela passou a se fixar no burburinho em volta do pneu. Talvez, como ele, tenha visto um dos motoristas subir no ônibus, dar ré depois que um pedaço de madeira foi ajeitado no chão fofo. Lean percebeu que seus olhos grandes fecharam-se e abriram-se com certo peso de sono, talvez desinteresse, alguma indiferença. A conversa havia esfriado, de novo, e ele tentava achar qualquer coisa para retomá-la, uma forma de reconectarem-se e de, se possível, puxar Carina, que já ia longe, para perto. Sabia que, sem as palavras certas, não poderia fazer nada de novo, e que um novo beijo ou o que fosse só viria após ultrapassado o obstáculo que se formara entre eles. Estranhava que ela não quisesse fazer o mesmo esforço.

O pedaço de madeira quebrou. Decepcionado, um dos homens bateu com os braços nas pernas. Correu até a pista, ao ver um ônibus se aproximar de onde estavam. O carro bufou seu freio e um mecanismo fez a porta abrir-se. Lean olhou Carina, de lado. Seus olhos se levantaram lentamente até os dele. Falou:
- Una vez, na Índia, bebi agua du Ganges... - e sorriu da peraltice. - Aquela agua sucha y contaminada du Ganges, cheia de corpos dos mortos, y nao mi feiz mal.

Um ano inteiro na Índia. Médica sanitarista. Conheceram-se na saída de Montevidéu, onde ele estudava. Agora iam a Porto Alegre. Ele para passar as férias em casa, ela para um curso na Ufrgs.
- Você teve sorte.
- Si. Boa parte da água doce da Índia está contaminada pelo mau usso da superpopulación, e deve ser tratada. Mais eles bebem do Ganges, porque é sagrado...
Ela tinha algumas tatuagens pelo corpo. Mostrou-lhe duas. Uma era um desenho abstrato, escuro, com uma bolinha preta na ponta esquerda. Lean piscou para ver se era aquilo mesmo.
- Un tribal - ela explicou. Não o tinha notado à noite. Só o piercing, na sobrancelha direita. No calor em que estavam metidos, lambeu-o, com sede, sentindo o gosto do metal eletrizar a língua e os dentes. Ouviu ela falar numa estranha língua de ar quente em sua orelha, e respondeu como se entendesse palavra por palavra.
- Desculpe-me perguntar, mas tem uma manchinha preta logo acima de sua tatuagem?
- Ah! Sim. Ele pintou um sinal que eu tenho. Está bem, assim, não?
- Claro. Está bem assim.

Os homens comemoraram a pequena vitória, depois de apertarem os últimos parafusos do pneu. Foi quando ela, que durante o tempo em que conversavam observava como ele a ação dos trabalhadores, voltou os olhos para Lean, um pouco acima dos dela, e falou:
- Nao vamos mais poder nos ver, quando chegarmos a Porto Alegre...
Os homens guardavam a grande roda dilacerada.
- Por quê? - ele ainda olhava a vespa brincando de se esconder no ar, em volta.
Alguns carros passavam zumbindo grave, sob o sol, agora um tanto mais forte pelo passar de quase uma hora. Pensou que, depois de tudo o que havia acontecido dentro do ônibus, o mais natural seria que procurassem um lugar escondido da curiosidade dos outros, do olhar do homem na poltrona ao lado, espichado, sem conseguir dormir, para cima deles. Um lugar entre quatro paredes, um recorte do mundo, protegido das contingências, do aleatório, da onipotência do acaso, um quarto recortado no espaço e no tempo, preparado só para dar as respostas que quisessem, objetivas, como o método inventado por Descartes e que consistia em submeter o real a condições específicas, controladas, para que as respostas pudessam ser as que tínhamos em mente antes mesmo de fazer a experiência. Idéias claras e distintas.

Seria natural, então, que, depois de tantas horas encontrados soltos no acaso, tivessem, por fim, um lugar em que a única coisa que saísse do controle fossem os corpos trocando cheiros e líquidos, pêlos e gostos. Um lugar onde pudessem, longe dos olhos dos espectadores, se esparramar, se ver por inteiro, não mais aos pedaços, como dentro do ônibus, o canto de um pescoço, uma orelha, um olho, uma parte do lábio superior, a rigidez do seio, uma parte das costas, a calcinha, vista pela calça aberta e puxada um pouco para baixo, sob o cobertor curto demais, que levou para a viagem, pensando que, para ele, bastaria... E a vespa.

O ônibus finalmente arrancaria.
- Vamos? - Carina convidou. Lean aceitou quieto, girando a acompanhar, no ar, a vespa silenciosa, que, sabia, o atordoaria pelo resto da vida. Primeiro era uma formiguinha. Outro dia, passou a ser uma manchinha um pouco maior. Agora, uma vespa. Mais tarde, um morcego, um anu, um corvo e, então, sabia, toda sua visão seria tomada pelo negror das coisas. As pessoas já entravam no carro e ele ainda perdido acompanhava a vespa voejando da esquerda para a direita, da direita para a esquerda e o som de um que outro carro passando.
- Você a está vendo, Carina?
- Vendo o quê?
- A vespa...
- Ah! A vespa? Vamos embora! – ela deu um tapa que a afastou seca para longe, indo bater na lataria. Lean subiu no ônibus sorrindo e a abraçando, enquanto o motorista resmungava e apontava o relógio no pulso.

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