quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Entrevista sobre livro e leitura


Transformar a qualidade da capacidade leitora do Brasil e trazer a leitura para o dia-a-dia do brasileiro. Esta é a prioridade do Programa Nacional do Livro e Leitura (PNLL), criado em 2006 numa iniciativa do Ministério da Educação (MEC), do Ministério da Cultura (Minc) e da Fundação Biblioteca Nacional. Dois anos após a implementação do programa, alguns passos foram dados para a constituição de uma efetiva política de livro e leitura no Brasil, mas os desafios ainda são enormes. O baixo índice de leitores, ratificado mais uma vez pela pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, escancara uma série de problemas de ordem educacional e cultural que precisam ser superados para que se crie, de fato, uma cultura da leitura no país.

O Cenpec conversou com Jéferson Assumção, coordenador geral de livro e leitura do Minc, durante o II Fórum do PNLL, realizado em agosto, em São Paulo. Na entrevista a seguir, além de falar sobre os objetivos e avanços do PNLL, ele comenta as causas do baixo índice de leitura no país e propõe ações para incentivar o brasileiro a ler mais.

Quais os principais avanços que o PNLL obteve nesses dois anos?

É difícil obter resultados rápidos, mas nós tivemos três avanços muito bons. O primeiro é que conseguimos chegar a um consenso em termos conceituais, principalmente sobre a relação entre cultura e educação, sobre qual é o papel do Ministério da Educação (MEC) e do Ministério da Cultura (Minc) e sobre o que é leitura dentro e fora da escola. O tipo de leitura que é feito pelo brasileiro deve ser uma leitura crítica e cultural que deve ultrapassar o funcional. Isso do ponto de vista conceitual foi um avanço muito grande.

O segundo avanço é político, com a articulação entre o Minc e o MEC e entre o governo federal com as demais esferas - governos estaduais e municipais - e a sociedade civil. Conseguir chegar nesses dois anos com esse nível de articulação, ultrapassando barreiras políticas e partidárias, é muito positivo porque isso não acontecia antes.

O terceiro avanço é de financiamento. Do ano passado para este ano houve um aumento de 197% de orçamento para o programa Livro Aberto do governo federal. Em 2003, eram 1170 municípios brasileiros sem biblioteca. Estamos chegando agora a 330 municípios brasileiros sem biblioteca e no final deste ano vamos zerar. O programa Mais Cultura do Minc também garantiu recursos importantes para a implantação e a modernização das bibliotecas e dos pontos de leitura. Além disso, teremos um edital para selecionar 5 mil agentes de leitura que vão trabalhar nos territórios das modernizações das bibliotecas. Essas ações do Minc se complementam com as ações que o MEC está fazendo, como o Programa Nacional Biblioteca na Escola e o Programa Nacional do Livro Didático. Por isso o PNLL é feito em conjunto com os dois ministérios.

Qual é o conceito de leitura que norteia as ações do PNLL?

O PNLL tem claro que a leitura, do ponto de vista cultural, qualifica nossa relação com outras áreas da leitura. A leitura qualifica nossa relação com a televisão, com o teatro, com o patrimônio, com a diversidade cultural, com a oralidade, com o meio ambiente, com a saúde, com o outro. Esse é o pressuposto básico do PNLL. Um texto do ex-ministro Gilberto Gil, que fala sobre a dimensão cultural da leitura, diz que "a cultura brasileira é rica na sua oralidade, na sua diversidade, na sua espontaneidade, mas ainda é pobre na sua dimensão escrita". A leitura tem de ser desenvolvida nessa dimensão escrita, contando com a riqueza da sua oralidade, da sua espontaneidade, da sua diversidade. É muito importante compreender a política de leitura do ponto de vista social para não passar por cima das características dessa diversidade cultural. Isso é importante até para o desenvolvimento da leitura no Brasil de uma maneira mais natural, articulada com as realidades culturais do país. Isso é um grande avanço conceitual. Eu acho que é mais fácil colocar o livro num lugar de destaque no imaginário do brasileiro assim, a partir desse pressupostos. Porque antes você falava assim: "ler é bom, ler é legal", mas a pessoa nem sabia para o que era, nem conseguia compreender.

A pesquisa "Retratos da Leitura no Brasil" mostrou que o brasileiro continua lendo muito pouco. Por que os índices de leitura ainda se mantêm baixos?

O grande empecilho é que o Brasil tem uma herança de analfabetismo enorme. Nossa formação, como povo, tem toda essa riqueza da oralidade, mas também uma baixa alfabetização. Hoje temos um índice de analfabetismo superior à Europa do final do século 19. Em 1890, 25% dos brasileiros eram alfabetizados. Na Alemanha, eram 90%. Enquanto o livro se desenvolveu bastante em outros lugares, é só em 1808, com a chegada da família real, é permitido fazer livro no Brasil - e feito pela corte, não é uma indústria do livro. O livro começa a ser feito no Brasil praticamente em 1930, quando surgiu o MEC, é muito recente. Se essa história fosse diferente, a cultura da leitura seria diferente também. Isso não tem nada a ver com o que muitos dizem que é "o brasileiro não gosta de ler", como se o brasileiro fosse naturalmente propenso a não gostar de ler. É óbvio que todo povo que não é alfabetizado, que não domina os rudimentos da leitura tem dificuldade para ler.

Quais as conclusões mais evidentes desse estudo?

A pesquisa mostra que a escola é o grande formador do leitor no Brasil. E precisamos perguntar que tipo de leitor está sendo formado na escola. Dos 4,7 livros lidos per capita/ano registrados nessa pesquisa, apenas 1,3 são livros não indicados pela escola. O que nós precisamos é ter uma reação a esse tipo de leitura que é fortemente utilitária, pragmática, instrumental, baseada nos livros que se lê na escola por obrigação, embora haja um esforço muito grande do MEC para que isso mude. Existem programas cada vez maiores levando literatura para a escola, para que se faça um contraponto a essa excessiva leitura instrumental. Nós não podemos pensar que é possível formar leitores sem a escola. O que nós temos é que qualificar a relação dos estudantes com os materiais de leitura, com a literatura. Precisamos formar leitores do ponto de vista cultural, não formar a pessoa que decodifica o texto. É mais do que isso, é formar um sujeito que tem desejo de conhecer, que tem uma relação hermenêutica e interpretativa com o mundo.

Por outro lado, o leitor é aquele que tem uma família que lê. É difícil ter leitores sem que exista uma família de leitores. Do ponto de vista cultural é muito importante ver como a mãe é o principal agente de leitura no Brasil. Por isso, nós temos que ter um programa voltado para ela e ter uma presença maior de agentes de leitura nas casas, nas famílias. As políticas devem ser feitas num conjunto bem amplo e complexo.

A ampliação das formas de acesso à leitura passa necessariamente pelas bibliotecas. Como muitas delas são apenas um espaço físico para guardar livros, ampliar o número de bibliotecas é suficiente? De que forma as bibliotecas podem se tornar mais atraentes e promover ações para estimular a leitura?

A biblioteca é o equipamento cultural mais presente no país. Então temos que aproveitar essa presença para atualizar o conceito de biblioteca e transformá-la num centro cultural. É óbvio que existem exceções maravilhosas, mas nós temos hoje uma biblioteca ultrapassada, que é um depósito de livros. Ela mostra uma relação com o livro que é insuficiente para se transformar numa cultura da leitura. O ministro da Cultura, Juca Ferreira, fala uma coisa muito importante: nós precisamos tirar uma idéia de biblioteca da cabeça e colocar outra. Essa outra idéia de biblioteca é a que muda a idéia do livro também Se a biblioteca não é interessante, o livro não é interessante. A biblioteca é o espaço da gratuidade, da generosidade, um espaço em que o acesso ao livro é franqueado e, num país como o nosso, isso é fundamental. Há modelos fantásticos de bibliotecas, como a de Santiago, de Medelin, de Bogotá e outros na América do Sul, que estamos trazendo para o Brasil. São bibliotecas que funcionam como centro cultural. O centro é o livro, mas têm cinema, música, teatro. Só que eles não abrem mão de chamar de biblioteca, porque as ações são ancoradas no livro. É essa a idéia do Programa Biblioteca Viva que estamos implementando, a idéia de que o livro tem que conviver com outros suportes, mas ele é central ainda.

De que forma as ações de formação de mediadores de leitura podem produzir resultados efetivos diante desse quadro?

Não adianta ter só a biblioteca com os livros. É preciso que alguém faça a mediação, que pegue o material e o apresente de uma maneira diferente para quem não tem contato, que consiga selecionar materiais de leitura. Se as crianças entram em contato com o gibi, elas passam dos quadrinhos para um outro tipo de leitura que tem menos imagem e um pouquinho mais de texto. Depois eles avançarão para um outro tipo de leitura que tem mais texto do que imagem até chegar a querer fazer outras incursões. Essa relação gradual com os materiais de leitura que um agente de leitura faz é muito importante. É a mesma coisa que a mãe e a família fazem, ou seja, quem já tem uma certa relação com a leitura vai passando o gosto. Para nós o conceito de biblioteca já conta com agentes de leitura. A biblioteca não é só um lugar com livros. É um lugar com livros, com outros materiais de leitura e com agentes de leitura.

Por que o livro no Brasil é caro?

Na abertura da Bienal, o ministro Juca Ferreira disse aos editores: "nós fizemos nossa parte de acabar com todos os impostos federais que incidiam sobre a produção do livro e o preço do livro não abaixou". Então o ministro, mais uma vez, pediu que os editores colaborassem com a diminuição do preço do livro. É fundamental que o preço do livro esteja condizente com o bolso do brasileiro. Os editores justificam dizendo que nunca se teve tantas coleções de livros de bolso no Brasil. O livro não diminuiu o preço, mas a desoneração teria possibilitado a diversidade de oferta de livro de bolso. Isso é real, mas insuficiente ainda.

Uma das alegações é que o preço é alto devido à pouca tiragem. Aí fica a dúvida: o livro é caro porque há poucos leitures ou há poucos leitores porque o livro é caro?

Isso é verdade. Por isso que uma política sistêmica deve atuar em todos esses elementos ao mesmo tempo. A contribuição dos editores para diminuir o preço do livro é importante, mas é preciso que haja uma escola que saiba formar leitores, famílias de leitores, tudo ao mesmo tempo. Não podemos ter respostas simplistas. Para formar leitores no Brasil precisamos de respostas de diversas matizes, de um espectro muito grande de ações.

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