terça-feira, 27 de maio de 2008

Entupia túneis com escuridão

“A vaca? Ah! A vaca entupia túneis com escuridão, tapava o sol com peneira e estivera a propósito de esquinas no tempo em que cidades eram escassas. Desse modo, desse medo, pouco se lembrava, afora os lampiões. Lhe serviriam de conforto as pedras, não fosse ter que carregá-las... Era engolida de tristeza e álcool, era perseguida por moscas e a rua a dormia coberta de frio. Enquanto a madrugada deitava com ela, a enfeitava de estrelas (mencionou aurora em seu diário, com medo de perdê-la)”
(Anastácio Kinski, poeta romeno, por ocasião da “desiluminação”, quando viu a face esquerda de Deus através de uma janela enregelada em Paris. Dias depois fundava o anastacismo kinski, estúpida doutrina religiosa em que pregava a cabal inexistência de Deus, da desiluminação que teve, e dele mesmo).

Tinha no rosto uma ponte

“Na verdade, há anos atrás, era atravessada de vielas, e tinha no rosto, às avessas, uma ponte. A Lua a encobria como nuvem no telhado das casas, de onde brincava de escorrer pelas paredes ásperas. Era mistura de muro com esquina; outras vezes, ria. Você podia ver em seus olhos (se quisesse, ou se já tivesse nascido, já que a vaca é alguém ou algo que atravessa os tempos desde que tempo há , em campos ressecados de esperança ou em verdes planícies onduladas de sereno e lonjura) a chuva fina que a alimentava, e em seu peito podia ouvir vozes de conchas. Porque era oca por fora, porque por dentro tinha uma avenida. Respondia a todas as perguntas com uma mesma resposta (acertava sempre). Quando chegou aqui, não existia, mas foi se construindo com as pedras que atiravam nela. Então, agora, é feita de concreto armado, derretida por dentro, como açúcar”
(O filósofo Kierkegaard, bradando, ainda ontem, no alto de um fiord dinamarquês)

Ela orvalha pelos poros

“Ela orvalha pelos poros e acumula pólen nas orelhas. É uma cruza de crisálida com hipopótamo. Rinocera dentro dágua, fora vira vaca. Tem cheiro de chuva no chão de barro das telhas e o sem-som da formiga se acordando, de manhã cedo, lavando os olhinhos em poça dágua. Entre peixe e gato pingado, já teve ginga e medo dágua. Meio passarinho que parda, amadurecia no outono. Quando vira-lata no beco (ou bueiro em noite alta), ratazanas moraram em sua goela. Cospia então baratas, engolia latas de cerveja, na digestão enferrujada dos restos da cidade”.
(Heidegger, filósofo, em 19 de agosto de 1932)

Ela adquiria cardume por engano

“Por meio de haver água, ela, a vaca, adquiria cardume por engano. Brotava no fundo do pátio, iluminada de manhãs, mas, enquanto névoa, nada a impedia e encobrir as casas, o que fazia com desmesurada desenvoltura. Fora forçada a falas numa tarde em que todas as palavras conheceram-na. Isso que nunca disse a cor dos paralelepípedos (úmidos das manhãs, a resvalavam). Há quem diga: a vaca tinha lembranças de poço na infância, antes de secar. Agora é difícil vertedouro de si mesma.
-Mas nunca teve lágrimas?
-Nunquinha
-Mesmo havendo nuvens sobre os olhos?”
(Diálogo entre Licurgo e Licínio, na Lacedônia, há algum tempo).

A vaca enquanto poço

(de uma lenda oriental passada oralmente de pai para filho até os nossos dias, já que não sabem escrever, mesmo – só fazer riscos)

“Conheci certa feita uma vaca incumbida de poço. Era surpreendia em noite alta mergulhada em si mesma. Sofria de transbordo em madrugadas dadas a desolo, como esta. Junto ao seu rosto, encontrava-se outro, visto que era feita de espelhos fundos. Era voltada a infinitos numa tarde em que ouvia a si mesma, e com um canto da boca bebia o próprio peito, porque tinha sede - mas fôssemos prová-la, apenas doce nos pareceria (havia ocasiões em que deixava escorrer pro fundo do seu rosto a madrugada toda, úmida de escuridão, onde se escondida)”.
(Tarquino, o etrusco, 200 a.C)

segunda-feira, 26 de maio de 2008

A antropofagia orteguiana 1

O filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883 - 1955) está bem mais próximo dos brasileiros do que em geral nos damos conta - e não só por sua grande influência na filosofia latino-americana na primeira metade do século XX. O que nos aproxima é, além de um grande número de temas em comum, o espírito antropofágico de seu pensamento. A antropofagia, ele exercitou desde muito cedo em duas estadas na Alemanha para deglutição do idealismo alemão e da cultura européia que ele considerava fazer falta na Espanha de seu tempo. Avidamente, devorou Nietzsche, o neokantismo, o pensamento de Husserl, Dilthey e tantos outros, que transpôs para a península ibérica (e para a América Latina, em artigos de jornal e em conferências realizadas em duas longas viagens), a fim de salvar essas circunstâncias, tão carentes não só de filosofia, stricto sensu, como de pensar com instrumentos intelectuais mais próprios uma série de problemas locais. No lugar das arbitrariedades e subjetividades comuns na Espanha e América Latina daquela época, o esforço pela técnica e objetividade, no entanto evitando o culto positivista. Racional e vital, ao mesmo tempo: raciovital, numa razão não “importada” da Europa, mas subordinada à vida, circunstância radical.
Essa antropofagia foi a marca do jovem Ortega na comparação com a geração imediatamente anterior à dele, cujo grande nome é o de Miguel de Unamuno. Fome que D. Miguel condenou no jovem impetuoso - cujo europeísmo lhe parecia modista e papagaiador de idéias alheias. Ortega levou anos de embate público com seu mestre para explicar seu “europeísmo” e enfim convencer os leitores espanhóis que sua proposta de europeização da Espanha era o único caminho a uma sociedade praticamente pré-moderna. Não por nada, desde então ele já era considerado pelos de sua geração como o filósofo espanhol capaz de deglutir, sem preconceito - tampouco subserviência - o que vinha de fora e mais do que transformar-se naquilo que digeria, como é intenção do canibalismo, assimilar para dar características espanholas a uma leitura da Europa: a chamada Europa vista da Espanha.

A antropofagia orteguiana 2

Essa assimilação produtiva conserva muitos pontos de contato com a antropofagia brasileira dos anos 20. Jovens burgueses iam à Europa (tal como o burguês Ortega) estudar e deglutir o velho mundo, com avidez semelhante à do madrilenho... A diferença é que, enquanto nossos modernistas comiam o que pudessem do futurismo de Marinetti, do dadaísmo de Tristan Tzara, do surrealismo de André Breton, Ortega dissolvia em seu estômago, naquele início de sua atividade filosófica, o neokantismo de Marburgo, que logo aplicaria (para em seguida também abandoná-lo em busca de sua própria filosofia, o Raciovitalismo)... Era o começo de uma faminta perspectiva do conhecimento que, no final das contas, se transformaria em um caldeirão transbordante de temperos bastante ecléticos, no mínimo saboroso.
Para Henrique de Lima Vaz, em O pensamento filosófico no Brasil de hoje, vivemos uma cultura de assimilação (assim como a da filosofia na Espanha). A filosofia no Brasil coloca numa grande panela um sem-número de idéias de fora para fazer nosso próprio cozido. Nessa assimilação do que vem de longe, o Raciovitalismo de Ortega, ainda conforme Lima Vaz, foi a filosofia que mais espaço teve entre nós no início do século XX. Como relata o filósofo brasileiro: “Já foi com razão notado que o raciovitalismo caminha para ocupar na cultura latino-americana um posto comparável ao do positivismo em fins do século passado. Também entre nós as idéias orteguianas penetram em círculos cada vez mais vastos da cultura” (in Franca, Leonel. Noções de História da Filosofia, RJ. Agir, 1987. p.355).
Foi a que mais influência exerceu na América Latina, logo após o positivismo e de certa maneira como resposta ao positivismo. Os brasileiros que se interessavam por filosofia naquela época também assimilaram muito da fonte orteguiana. Fonte que secou pouco depois de que chegava ao País a Filosofia acadêmica, propriamente dita, e nossos interesses intelectuais voltavam-se, quase que exclusivamente, para a França, a Alemanha e o mundo de língua inglesa. Como diz Hélio Jaguaribe, muito do desconhecimento de sua obra pode ser explicado por Ortega ter se recusado a viver num desses grandes centros intelectuais. Desse modo, a Espanha tirou de seu filósofo o prestígio que outros lugares emprestaram e seguem emprestando a pensadores (na opinião de Jaguaribe) menores que o espanhol embora bem mais conhecidos. Caso de Sartre.
Ortega é certamente um filósofo ainda bastante útil para se pensar uma imensa gama de problemas, especialmente os vividos pela sociedade brasileira. Muito provavelmente, mais útil que diversos outros mergulhados em outras circunstâncias e interesses mais distantes que os expressos em A Rebelião das Massas, O Homem e a Gente e outros textos. A filosofia que ele receitou - mas principalmente o espírito aventureiro de seu filosofar - como remédio para o “problema Espanha”, a tenacidade de seu trabalho de pedagogo social, seu exemplar esforço por salvar uma Espanha empobrecida em todos os aspectos, o magnetismo aglutinador que exerceu sobre os intelectuais espanhóis de sua época em torno da tarefa de salvar sua circunstância (fracassada, logo adiante, com a ditadura franquista), ainda podem servir de inspiração para um país que, no século XXI, passa por muitos dos problemas da Espanha das três primeiras décadas do século passado.

Influência

Ortega morreu em 1955. Desde então, sua influência foi declinando, inclusive em seu país (também ele voltado para os centros de maior prestígio). Em 1983, no entanto, por ocasião do seu centenário, uma série de atividades, entre elas o lançamento da nova edição das Obras Completas, organizadas por seu discípulo Paulino Garagorri, deu novo fôlego aos estudos orteguianos. Em 2005, no cinqüentenário da morte de Ortega y Gasset, comemorado num seminário de quatro dias em outubro, na Universidad Complutense de Madrid e Fundación Ortega y Gasset (FOG), alguns temas de Ortega voltaram à pauta rendendo diversas matérias em jornais, quase nenhuma no Brasil - interessante é observar como a nova edição das Obras Completas vem sendo conduzida por estudiosos cuja idade é, em média, de menos de 35 anos. São os mesmos que, principalmente da Espanha, mas também da Argentina e outros países, contribuem com a Revista de Estudios Orteguianos, editada pela FOG, animados pela convicção da atualidade do pensamento de Ortega.
Entre os temas mais atuais, sem dúvida está seu diagnóstico da sociedade de massas. Vivo – e certamente ainda mais hoje do que na época em que foi escrito – o homem-massa, personagem filosófico que o espanhol delimitou nos anos 30, segue de grande atualidade. “Vivemos sob o brutal império das massas!” – bradava Ortega, naquela época. O eco, à força de diversos acontecimentos, fica cada vez mais forte à medida que passam os anos.

A vaca azul é ninja

Ao contrário da espécie boiúna, bovinam vacas ronins. Comeram grama de outrora. Lindas borboletas ornam o limiar obceno de suas tetas rasas. Onde mergulham vis bebês samurais em busca de sua sabedoria láctea. É a própria via de estrelas, mergulhada no espelho do estreito do Mar Amarelo.