terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Uma vaca no ombro

Tatuei a vaca no braço esquerdo, quase no ombro. Uma vaca azul, vestida de ninja, plácida que se destaca com azul turquesa, esmeradamente registrada em minha pele branca como as ilustrações que se faziam em couros de cabras, da Antigüidade até a Idade Média... Até o Renascimento, senão me engano, até o Renascimento italiano, quando o impressor Aldo Manuzio inventou o livro moderno, o livro com margens, sem as iluminuras, o livro preto no branco, letra no papel, times new roman, no máximo itálico e um bold... Sem graça... Não... A graça sendo outra, é claro...

Enxergando

Uma vez o Guilherme, meu filho, ainda aos cinco anos, me perguntou por que eu não tinha televisão em casa e por que eu gostava desses livros, que graça tinham os livros sem desenho, sem ilustrações coloridas... Inquiria-me, lindo, rodeado por eles em minha desordenada biblioteca, a carinha por cima do meu peito, olhinhos que ainda não decifravam essas “minhoquinhas pretas” retorcidas na pele branca do papel... Então, lhe disse: nesses livros, o desenho a gente faz aqui dentro, e apontei sua cabeça de cabelos crespos de anjinho... Quer ver? E contei-lhe um pouco do que estava se passando na história que eu lia. Estás enxergando os desenhos? E ele: Estou... Aprendeu, assim, a imaginar, ou melhor, a ver, intencionalmente, a própria imaginação, o que significa, admirar, olhar de fora: filosofar...

Rimbauds falsos

E agora eu tatuo a vaca no braço, milhares de quilômetros longe dele, eu tatuo a vaca de quando tudo começou... Tudo começou... Que tudo? Tudo começou, quando... A Vaca Azul é Ninja foi meu primeiro livro, meu primeiro escrito com alguma pretensão literária, depois de dezenas de cadernos jogados fora, todos os anos, jogados no lixo a cada final de ano com seus bichos que não se mexiam, com suas idéias moles, corriqueiras e inconsistentes de um Rimbaud em espírito, mas não em carne, neurônio e os nervos necessários ara uma temporada no inferno... Um Rimbaud mal-traduzido, como um quadro falso... As traduções são como quadros falsos, copiados, diz Shopenhauer... Como eu, 17, 18 anos, aquele Rimbaud falso, que havia decorado um carcomido Rimbaud, deformado a não dar mais de visto tão de longe, aqui debaixo, lá debaixo, não sei onde, lá do Sul...

Mapas sureados

É que o Sul que sempre me pareceu embaixo, até hoje, tenho essa sensação, somente abalada uma única vez, quando vi, na Inglaterra, em Greenwich, no Museu Naval, um mapa sureado, como se diz em espanhol, um mapa não norteado, mas, como me explicou um professor de geografia na Espanha, tendo o sul como norte... Então o globo ficava de cabeça para baixo, estranhamente, com Meca quase ao centro... Ah, sim, era por isso, os árabes, ou pelo menos os que viviam na Espanha, em Córdoba, Sevilha etc, punham Meca no centro de seus mapas, o sul em cima e o norte embaixo...
Eu disse pela primeira vez, mas não é verdade, pois é claro que a primeira vez que vi um mapa desses foi em Porto Alegre. Foi no Fórum Social Mundial, num tempo em que tentávamos colocar as coisas de pernas para o ar, em longas marchas pela Borges de Medeiros. Era o tempo da Davos quente, do contrapoder global simbolizado por um globo de cabeça para baixo. Um globo em que a parte pobre do planeta subia e a rica descia... Logo depois, aparecia o logo do Fórum em que não há nem norte nem sul e todos os continentes aparecem em uma mesma linha... Talvez depois seja possível voltar a falar disso, depois de Belém 2009... Estaremos lá. Eu, Cecília, Guilherme e a Vaca Azul é Ninja.

Londres, um dia

No momento eu falava da vaca que eu tatuava no braço, feita vagarosamente já há mais de uma hora por um amigo tatuador que trabalha em Edimburgo, na Escócia, no norte, a bela Edimburgo, onde estive uma vez com a Ana Paula, minha então namorada, depois de duas semanas na linda Londres, na feia Londres, a única grande cidade que conheço para a qual não tenho nenhuma vontade de voltar... Mais ou menos 15 dias são o suficiente para Londres; anos não dão conta de uma Paris, Berlim, Roma ou Amsterdan. Mas, falava de Edimburgo, com seu castelo no meio da cidade, no alto de um monte, em cuja frente, há uma engraçada placa de bronze encimada pela cabeça de um veado. Bebíamos e ríamos, em casa... Meu amigo tatuava a vaca e falávamos de Edimburgo, da cidade úmida e cinza, medieval e impressionante.

- A terra de Stevenson...

De Robert Loius Stevenson, do querido autor de A Ilha do Tesouro, de meu Virgílio a me conduzir, pela primeira vez, pelo inferno e o paraíso da literatura, ele a quem devo a liberdade fictícia, mágica e ilusória, que me ajudou a ver a possibiliade de fugir do prosaísmo do mundo...
A prosa de Stevenson, o cheiro do café - lembra Borges... Eu continuo dentro do navio em que entrei, pela primeira vez, para me safar do Sul, frio e pobre, o falso Rimbaud do Sul, cópia malfeita do arquétipo do mundo das idéias. Cópia malfeita, esboço torto do poeta, que não deu em nada, a não ser a salvação daquelas horas, dias e anos, dentro de uma roupa de poeta, de um cabelo de poeta, botas de poeta capaz de encantar muito mais a si próprio do que a quem quer que fosse, ao redor...

Cópias erradas

A mentira que se tornaria verdade mais adiante, não na figura do poeta, mas do adulto curtido nessa literatura falsa, embebido no simulacro mal-traduzido, cuja distância do original pode até ter feito bem. No final, que distância proveitosa! Que distância útil, que solidão transformadora de um homem comum num verdadeiro poeta de mentira... Perse, Auden, Eliot... Útil, é claro, fazer-me de mim mesmo, deste modo... A cópia de cópias erradas. Mas, afinal, é só erro é que produz. Só o erro, só a compreensão errada é que é produtiva. A compreensão de algo dito ou escrito é contrário exato da criação. O que compreende, não cria. A criação é produto do engano...

Em minha pele pelas calçadas da Asa Norte

Enganei-me imitando e criei A Vaca Azul é Ninja, essa, essa mesma, que doloridamente se cravava em meu braço, perto do ombro, pra sempre, ou até que este corpo exista antes de voltar para a terra, de onde veio, de se enfiar mole num buraco da Terra, como um verme da Terra a girar no corpo dela pelo espaço, tal como no lindo poema do Wordsworth (que no original talvez tenha outra força)...

Eu queria ser Rimbaud e escrevi a vaca, ria, olhando para sua cara maravilhosa já uma realidade no meu corpo. Eu, o autor, emprestando um pedaço de meu corpo para que a vaca passasse a ter, também ela, um. Da costela de Adão, ou coisa parecida, a costela gorda da vaca ganhando concreção... Sairia do livro, o desenho da Chica, da Francisca Braga, que toca guitarra na Danm Laser Vampires, para as ruas de Brasília etc...

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Entrevista sobre livro e leitura


Transformar a qualidade da capacidade leitora do Brasil e trazer a leitura para o dia-a-dia do brasileiro. Esta é a prioridade do Programa Nacional do Livro e Leitura (PNLL), criado em 2006 numa iniciativa do Ministério da Educação (MEC), do Ministério da Cultura (Minc) e da Fundação Biblioteca Nacional. Dois anos após a implementação do programa, alguns passos foram dados para a constituição de uma efetiva política de livro e leitura no Brasil, mas os desafios ainda são enormes. O baixo índice de leitores, ratificado mais uma vez pela pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, escancara uma série de problemas de ordem educacional e cultural que precisam ser superados para que se crie, de fato, uma cultura da leitura no país.

O Cenpec conversou com Jéferson Assumção, coordenador geral de livro e leitura do Minc, durante o II Fórum do PNLL, realizado em agosto, em São Paulo. Na entrevista a seguir, além de falar sobre os objetivos e avanços do PNLL, ele comenta as causas do baixo índice de leitura no país e propõe ações para incentivar o brasileiro a ler mais.

Quais os principais avanços que o PNLL obteve nesses dois anos?

É difícil obter resultados rápidos, mas nós tivemos três avanços muito bons. O primeiro é que conseguimos chegar a um consenso em termos conceituais, principalmente sobre a relação entre cultura e educação, sobre qual é o papel do Ministério da Educação (MEC) e do Ministério da Cultura (Minc) e sobre o que é leitura dentro e fora da escola. O tipo de leitura que é feito pelo brasileiro deve ser uma leitura crítica e cultural que deve ultrapassar o funcional. Isso do ponto de vista conceitual foi um avanço muito grande.

O segundo avanço é político, com a articulação entre o Minc e o MEC e entre o governo federal com as demais esferas - governos estaduais e municipais - e a sociedade civil. Conseguir chegar nesses dois anos com esse nível de articulação, ultrapassando barreiras políticas e partidárias, é muito positivo porque isso não acontecia antes.

O terceiro avanço é de financiamento. Do ano passado para este ano houve um aumento de 197% de orçamento para o programa Livro Aberto do governo federal. Em 2003, eram 1170 municípios brasileiros sem biblioteca. Estamos chegando agora a 330 municípios brasileiros sem biblioteca e no final deste ano vamos zerar. O programa Mais Cultura do Minc também garantiu recursos importantes para a implantação e a modernização das bibliotecas e dos pontos de leitura. Além disso, teremos um edital para selecionar 5 mil agentes de leitura que vão trabalhar nos territórios das modernizações das bibliotecas. Essas ações do Minc se complementam com as ações que o MEC está fazendo, como o Programa Nacional Biblioteca na Escola e o Programa Nacional do Livro Didático. Por isso o PNLL é feito em conjunto com os dois ministérios.

Qual é o conceito de leitura que norteia as ações do PNLL?

O PNLL tem claro que a leitura, do ponto de vista cultural, qualifica nossa relação com outras áreas da leitura. A leitura qualifica nossa relação com a televisão, com o teatro, com o patrimônio, com a diversidade cultural, com a oralidade, com o meio ambiente, com a saúde, com o outro. Esse é o pressuposto básico do PNLL. Um texto do ex-ministro Gilberto Gil, que fala sobre a dimensão cultural da leitura, diz que "a cultura brasileira é rica na sua oralidade, na sua diversidade, na sua espontaneidade, mas ainda é pobre na sua dimensão escrita". A leitura tem de ser desenvolvida nessa dimensão escrita, contando com a riqueza da sua oralidade, da sua espontaneidade, da sua diversidade. É muito importante compreender a política de leitura do ponto de vista social para não passar por cima das características dessa diversidade cultural. Isso é importante até para o desenvolvimento da leitura no Brasil de uma maneira mais natural, articulada com as realidades culturais do país. Isso é um grande avanço conceitual. Eu acho que é mais fácil colocar o livro num lugar de destaque no imaginário do brasileiro assim, a partir desse pressupostos. Porque antes você falava assim: "ler é bom, ler é legal", mas a pessoa nem sabia para o que era, nem conseguia compreender.

A pesquisa "Retratos da Leitura no Brasil" mostrou que o brasileiro continua lendo muito pouco. Por que os índices de leitura ainda se mantêm baixos?

O grande empecilho é que o Brasil tem uma herança de analfabetismo enorme. Nossa formação, como povo, tem toda essa riqueza da oralidade, mas também uma baixa alfabetização. Hoje temos um índice de analfabetismo superior à Europa do final do século 19. Em 1890, 25% dos brasileiros eram alfabetizados. Na Alemanha, eram 90%. Enquanto o livro se desenvolveu bastante em outros lugares, é só em 1808, com a chegada da família real, é permitido fazer livro no Brasil - e feito pela corte, não é uma indústria do livro. O livro começa a ser feito no Brasil praticamente em 1930, quando surgiu o MEC, é muito recente. Se essa história fosse diferente, a cultura da leitura seria diferente também. Isso não tem nada a ver com o que muitos dizem que é "o brasileiro não gosta de ler", como se o brasileiro fosse naturalmente propenso a não gostar de ler. É óbvio que todo povo que não é alfabetizado, que não domina os rudimentos da leitura tem dificuldade para ler.

Quais as conclusões mais evidentes desse estudo?

A pesquisa mostra que a escola é o grande formador do leitor no Brasil. E precisamos perguntar que tipo de leitor está sendo formado na escola. Dos 4,7 livros lidos per capita/ano registrados nessa pesquisa, apenas 1,3 são livros não indicados pela escola. O que nós precisamos é ter uma reação a esse tipo de leitura que é fortemente utilitária, pragmática, instrumental, baseada nos livros que se lê na escola por obrigação, embora haja um esforço muito grande do MEC para que isso mude. Existem programas cada vez maiores levando literatura para a escola, para que se faça um contraponto a essa excessiva leitura instrumental. Nós não podemos pensar que é possível formar leitores sem a escola. O que nós temos é que qualificar a relação dos estudantes com os materiais de leitura, com a literatura. Precisamos formar leitores do ponto de vista cultural, não formar a pessoa que decodifica o texto. É mais do que isso, é formar um sujeito que tem desejo de conhecer, que tem uma relação hermenêutica e interpretativa com o mundo.

Por outro lado, o leitor é aquele que tem uma família que lê. É difícil ter leitores sem que exista uma família de leitores. Do ponto de vista cultural é muito importante ver como a mãe é o principal agente de leitura no Brasil. Por isso, nós temos que ter um programa voltado para ela e ter uma presença maior de agentes de leitura nas casas, nas famílias. As políticas devem ser feitas num conjunto bem amplo e complexo.

A ampliação das formas de acesso à leitura passa necessariamente pelas bibliotecas. Como muitas delas são apenas um espaço físico para guardar livros, ampliar o número de bibliotecas é suficiente? De que forma as bibliotecas podem se tornar mais atraentes e promover ações para estimular a leitura?

A biblioteca é o equipamento cultural mais presente no país. Então temos que aproveitar essa presença para atualizar o conceito de biblioteca e transformá-la num centro cultural. É óbvio que existem exceções maravilhosas, mas nós temos hoje uma biblioteca ultrapassada, que é um depósito de livros. Ela mostra uma relação com o livro que é insuficiente para se transformar numa cultura da leitura. O ministro da Cultura, Juca Ferreira, fala uma coisa muito importante: nós precisamos tirar uma idéia de biblioteca da cabeça e colocar outra. Essa outra idéia de biblioteca é a que muda a idéia do livro também Se a biblioteca não é interessante, o livro não é interessante. A biblioteca é o espaço da gratuidade, da generosidade, um espaço em que o acesso ao livro é franqueado e, num país como o nosso, isso é fundamental. Há modelos fantásticos de bibliotecas, como a de Santiago, de Medelin, de Bogotá e outros na América do Sul, que estamos trazendo para o Brasil. São bibliotecas que funcionam como centro cultural. O centro é o livro, mas têm cinema, música, teatro. Só que eles não abrem mão de chamar de biblioteca, porque as ações são ancoradas no livro. É essa a idéia do Programa Biblioteca Viva que estamos implementando, a idéia de que o livro tem que conviver com outros suportes, mas ele é central ainda.

De que forma as ações de formação de mediadores de leitura podem produzir resultados efetivos diante desse quadro?

Não adianta ter só a biblioteca com os livros. É preciso que alguém faça a mediação, que pegue o material e o apresente de uma maneira diferente para quem não tem contato, que consiga selecionar materiais de leitura. Se as crianças entram em contato com o gibi, elas passam dos quadrinhos para um outro tipo de leitura que tem menos imagem e um pouquinho mais de texto. Depois eles avançarão para um outro tipo de leitura que tem mais texto do que imagem até chegar a querer fazer outras incursões. Essa relação gradual com os materiais de leitura que um agente de leitura faz é muito importante. É a mesma coisa que a mãe e a família fazem, ou seja, quem já tem uma certa relação com a leitura vai passando o gosto. Para nós o conceito de biblioteca já conta com agentes de leitura. A biblioteca não é só um lugar com livros. É um lugar com livros, com outros materiais de leitura e com agentes de leitura.

Por que o livro no Brasil é caro?

Na abertura da Bienal, o ministro Juca Ferreira disse aos editores: "nós fizemos nossa parte de acabar com todos os impostos federais que incidiam sobre a produção do livro e o preço do livro não abaixou". Então o ministro, mais uma vez, pediu que os editores colaborassem com a diminuição do preço do livro. É fundamental que o preço do livro esteja condizente com o bolso do brasileiro. Os editores justificam dizendo que nunca se teve tantas coleções de livros de bolso no Brasil. O livro não diminuiu o preço, mas a desoneração teria possibilitado a diversidade de oferta de livro de bolso. Isso é real, mas insuficiente ainda.

Uma das alegações é que o preço é alto devido à pouca tiragem. Aí fica a dúvida: o livro é caro porque há poucos leitures ou há poucos leitores porque o livro é caro?

Isso é verdade. Por isso que uma política sistêmica deve atuar em todos esses elementos ao mesmo tempo. A contribuição dos editores para diminuir o preço do livro é importante, mas é preciso que haja uma escola que saiba formar leitores, famílias de leitores, tudo ao mesmo tempo. Não podemos ter respostas simplistas. Para formar leitores no Brasil precisamos de respostas de diversas matizes, de um espectro muito grande de ações.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Entupia túneis com escuridão

“A vaca? Ah! A vaca entupia túneis com escuridão, tapava o sol com peneira e estivera a propósito de esquinas no tempo em que cidades eram escassas. Desse modo, desse medo, pouco se lembrava, afora os lampiões. Lhe serviriam de conforto as pedras, não fosse ter que carregá-las... Era engolida de tristeza e álcool, era perseguida por moscas e a rua a dormia coberta de frio. Enquanto a madrugada deitava com ela, a enfeitava de estrelas (mencionou aurora em seu diário, com medo de perdê-la)”
(Anastácio Kinski, poeta romeno, por ocasião da “desiluminação”, quando viu a face esquerda de Deus através de uma janela enregelada em Paris. Dias depois fundava o anastacismo kinski, estúpida doutrina religiosa em que pregava a cabal inexistência de Deus, da desiluminação que teve, e dele mesmo).

Tinha no rosto uma ponte

“Na verdade, há anos atrás, era atravessada de vielas, e tinha no rosto, às avessas, uma ponte. A Lua a encobria como nuvem no telhado das casas, de onde brincava de escorrer pelas paredes ásperas. Era mistura de muro com esquina; outras vezes, ria. Você podia ver em seus olhos (se quisesse, ou se já tivesse nascido, já que a vaca é alguém ou algo que atravessa os tempos desde que tempo há , em campos ressecados de esperança ou em verdes planícies onduladas de sereno e lonjura) a chuva fina que a alimentava, e em seu peito podia ouvir vozes de conchas. Porque era oca por fora, porque por dentro tinha uma avenida. Respondia a todas as perguntas com uma mesma resposta (acertava sempre). Quando chegou aqui, não existia, mas foi se construindo com as pedras que atiravam nela. Então, agora, é feita de concreto armado, derretida por dentro, como açúcar”
(O filósofo Kierkegaard, bradando, ainda ontem, no alto de um fiord dinamarquês)

Ela orvalha pelos poros

“Ela orvalha pelos poros e acumula pólen nas orelhas. É uma cruza de crisálida com hipopótamo. Rinocera dentro dágua, fora vira vaca. Tem cheiro de chuva no chão de barro das telhas e o sem-som da formiga se acordando, de manhã cedo, lavando os olhinhos em poça dágua. Entre peixe e gato pingado, já teve ginga e medo dágua. Meio passarinho que parda, amadurecia no outono. Quando vira-lata no beco (ou bueiro em noite alta), ratazanas moraram em sua goela. Cospia então baratas, engolia latas de cerveja, na digestão enferrujada dos restos da cidade”.
(Heidegger, filósofo, em 19 de agosto de 1932)

Ela adquiria cardume por engano

“Por meio de haver água, ela, a vaca, adquiria cardume por engano. Brotava no fundo do pátio, iluminada de manhãs, mas, enquanto névoa, nada a impedia e encobrir as casas, o que fazia com desmesurada desenvoltura. Fora forçada a falas numa tarde em que todas as palavras conheceram-na. Isso que nunca disse a cor dos paralelepípedos (úmidos das manhãs, a resvalavam). Há quem diga: a vaca tinha lembranças de poço na infância, antes de secar. Agora é difícil vertedouro de si mesma.
-Mas nunca teve lágrimas?
-Nunquinha
-Mesmo havendo nuvens sobre os olhos?”
(Diálogo entre Licurgo e Licínio, na Lacedônia, há algum tempo).

A vaca enquanto poço

(de uma lenda oriental passada oralmente de pai para filho até os nossos dias, já que não sabem escrever, mesmo – só fazer riscos)

“Conheci certa feita uma vaca incumbida de poço. Era surpreendia em noite alta mergulhada em si mesma. Sofria de transbordo em madrugadas dadas a desolo, como esta. Junto ao seu rosto, encontrava-se outro, visto que era feita de espelhos fundos. Era voltada a infinitos numa tarde em que ouvia a si mesma, e com um canto da boca bebia o próprio peito, porque tinha sede - mas fôssemos prová-la, apenas doce nos pareceria (havia ocasiões em que deixava escorrer pro fundo do seu rosto a madrugada toda, úmida de escuridão, onde se escondida)”.
(Tarquino, o etrusco, 200 a.C)

segunda-feira, 26 de maio de 2008

A antropofagia orteguiana 1

O filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883 - 1955) está bem mais próximo dos brasileiros do que em geral nos damos conta - e não só por sua grande influência na filosofia latino-americana na primeira metade do século XX. O que nos aproxima é, além de um grande número de temas em comum, o espírito antropofágico de seu pensamento. A antropofagia, ele exercitou desde muito cedo em duas estadas na Alemanha para deglutição do idealismo alemão e da cultura européia que ele considerava fazer falta na Espanha de seu tempo. Avidamente, devorou Nietzsche, o neokantismo, o pensamento de Husserl, Dilthey e tantos outros, que transpôs para a península ibérica (e para a América Latina, em artigos de jornal e em conferências realizadas em duas longas viagens), a fim de salvar essas circunstâncias, tão carentes não só de filosofia, stricto sensu, como de pensar com instrumentos intelectuais mais próprios uma série de problemas locais. No lugar das arbitrariedades e subjetividades comuns na Espanha e América Latina daquela época, o esforço pela técnica e objetividade, no entanto evitando o culto positivista. Racional e vital, ao mesmo tempo: raciovital, numa razão não “importada” da Europa, mas subordinada à vida, circunstância radical.
Essa antropofagia foi a marca do jovem Ortega na comparação com a geração imediatamente anterior à dele, cujo grande nome é o de Miguel de Unamuno. Fome que D. Miguel condenou no jovem impetuoso - cujo europeísmo lhe parecia modista e papagaiador de idéias alheias. Ortega levou anos de embate público com seu mestre para explicar seu “europeísmo” e enfim convencer os leitores espanhóis que sua proposta de europeização da Espanha era o único caminho a uma sociedade praticamente pré-moderna. Não por nada, desde então ele já era considerado pelos de sua geração como o filósofo espanhol capaz de deglutir, sem preconceito - tampouco subserviência - o que vinha de fora e mais do que transformar-se naquilo que digeria, como é intenção do canibalismo, assimilar para dar características espanholas a uma leitura da Europa: a chamada Europa vista da Espanha.

A antropofagia orteguiana 2

Essa assimilação produtiva conserva muitos pontos de contato com a antropofagia brasileira dos anos 20. Jovens burgueses iam à Europa (tal como o burguês Ortega) estudar e deglutir o velho mundo, com avidez semelhante à do madrilenho... A diferença é que, enquanto nossos modernistas comiam o que pudessem do futurismo de Marinetti, do dadaísmo de Tristan Tzara, do surrealismo de André Breton, Ortega dissolvia em seu estômago, naquele início de sua atividade filosófica, o neokantismo de Marburgo, que logo aplicaria (para em seguida também abandoná-lo em busca de sua própria filosofia, o Raciovitalismo)... Era o começo de uma faminta perspectiva do conhecimento que, no final das contas, se transformaria em um caldeirão transbordante de temperos bastante ecléticos, no mínimo saboroso.
Para Henrique de Lima Vaz, em O pensamento filosófico no Brasil de hoje, vivemos uma cultura de assimilação (assim como a da filosofia na Espanha). A filosofia no Brasil coloca numa grande panela um sem-número de idéias de fora para fazer nosso próprio cozido. Nessa assimilação do que vem de longe, o Raciovitalismo de Ortega, ainda conforme Lima Vaz, foi a filosofia que mais espaço teve entre nós no início do século XX. Como relata o filósofo brasileiro: “Já foi com razão notado que o raciovitalismo caminha para ocupar na cultura latino-americana um posto comparável ao do positivismo em fins do século passado. Também entre nós as idéias orteguianas penetram em círculos cada vez mais vastos da cultura” (in Franca, Leonel. Noções de História da Filosofia, RJ. Agir, 1987. p.355).
Foi a que mais influência exerceu na América Latina, logo após o positivismo e de certa maneira como resposta ao positivismo. Os brasileiros que se interessavam por filosofia naquela época também assimilaram muito da fonte orteguiana. Fonte que secou pouco depois de que chegava ao País a Filosofia acadêmica, propriamente dita, e nossos interesses intelectuais voltavam-se, quase que exclusivamente, para a França, a Alemanha e o mundo de língua inglesa. Como diz Hélio Jaguaribe, muito do desconhecimento de sua obra pode ser explicado por Ortega ter se recusado a viver num desses grandes centros intelectuais. Desse modo, a Espanha tirou de seu filósofo o prestígio que outros lugares emprestaram e seguem emprestando a pensadores (na opinião de Jaguaribe) menores que o espanhol embora bem mais conhecidos. Caso de Sartre.
Ortega é certamente um filósofo ainda bastante útil para se pensar uma imensa gama de problemas, especialmente os vividos pela sociedade brasileira. Muito provavelmente, mais útil que diversos outros mergulhados em outras circunstâncias e interesses mais distantes que os expressos em A Rebelião das Massas, O Homem e a Gente e outros textos. A filosofia que ele receitou - mas principalmente o espírito aventureiro de seu filosofar - como remédio para o “problema Espanha”, a tenacidade de seu trabalho de pedagogo social, seu exemplar esforço por salvar uma Espanha empobrecida em todos os aspectos, o magnetismo aglutinador que exerceu sobre os intelectuais espanhóis de sua época em torno da tarefa de salvar sua circunstância (fracassada, logo adiante, com a ditadura franquista), ainda podem servir de inspiração para um país que, no século XXI, passa por muitos dos problemas da Espanha das três primeiras décadas do século passado.

Influência

Ortega morreu em 1955. Desde então, sua influência foi declinando, inclusive em seu país (também ele voltado para os centros de maior prestígio). Em 1983, no entanto, por ocasião do seu centenário, uma série de atividades, entre elas o lançamento da nova edição das Obras Completas, organizadas por seu discípulo Paulino Garagorri, deu novo fôlego aos estudos orteguianos. Em 2005, no cinqüentenário da morte de Ortega y Gasset, comemorado num seminário de quatro dias em outubro, na Universidad Complutense de Madrid e Fundación Ortega y Gasset (FOG), alguns temas de Ortega voltaram à pauta rendendo diversas matérias em jornais, quase nenhuma no Brasil - interessante é observar como a nova edição das Obras Completas vem sendo conduzida por estudiosos cuja idade é, em média, de menos de 35 anos. São os mesmos que, principalmente da Espanha, mas também da Argentina e outros países, contribuem com a Revista de Estudios Orteguianos, editada pela FOG, animados pela convicção da atualidade do pensamento de Ortega.
Entre os temas mais atuais, sem dúvida está seu diagnóstico da sociedade de massas. Vivo – e certamente ainda mais hoje do que na época em que foi escrito – o homem-massa, personagem filosófico que o espanhol delimitou nos anos 30, segue de grande atualidade. “Vivemos sob o brutal império das massas!” – bradava Ortega, naquela época. O eco, à força de diversos acontecimentos, fica cada vez mais forte à medida que passam os anos.

A vaca azul é ninja

Ao contrário da espécie boiúna, bovinam vacas ronins. Comeram grama de outrora. Lindas borboletas ornam o limiar obceno de suas tetas rasas. Onde mergulham vis bebês samurais em busca de sua sabedoria láctea. É a própria via de estrelas, mergulhada no espelho do estreito do Mar Amarelo.